O século da solidão

Quantos de nós nunca se sentiram sós? 5000 amigos no Facebook, zero amigos para tomar um café ou dois dedos de conversa… Quem nunca deambulou num centro comercial, rodeado de pessoas, sem conhecer e falar com alguma delas?

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  • 19:41 | Sexta-feira, 30 de Julho de 2021
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“Este é o século da solidão” é o título do primeiro capítulo, do livro O Século da Solidão: Como Restaurar as Ligações Humanas” (Temas e Debates, 2021) da conceituada economista, professora e comunicadora, considerada pelo The Observer uma das principais pensadoras a nível mundial, Noreena Hertz.

A solidão duplicou na União Europeia (UE) entre abril e julho de 2020, no início da pandemia de covid-19, sendo Portugal o sexto país europeu com maior subida, segundo um estudo da Comissão Europeia divulgado esta segunda-feira. Os dados constam de um relatório do Centro Comum de Investigação (CCI), o serviço científico interno da Comissão Europeia, sobre solidão e isolamento social nos Estados-membros, que indica que “um em cada quatro cidadãos da UE relatou sentir-se sozinho durante os primeiros meses da pandemia”.

A pandemia terá agravado e visibilizado a solidão, “Todavia, o Século da Solidão não começou apenas no primeiro trimestre de 2020. Quando a Covid-19 atacou, muitos de nós já nos sentíamos sós, isolados e atomizados havia bastante tempo.” Quantos de nós nunca se sentiram sós? 5000 amigos no Facebook, zero amigos para tomar um café ou dois dedos de conversa… Quem nunca deambulou num centro comercial, rodeado de pessoas, sem conhecer e falar com alguma delas?


Num mundo cada vez mais urbanizado, a ONU prevê que as cidades abriguem 70% da população mundial até 2050, parece evidente que as urbes podem ser lugares muito solitários. Contudo, a solidão não é um problema exclusivamente urbano, como podemos constar no relatório LONELINESS AND THE WORKPLACE[1] (2020): “Embora quem vive na cidade tenha tendência para ser mais solitário do que os seus companheiros do campo, quem vive nas zonas rurais pode sentir as suas formas muito particulares e profundas de solidão.”. A solidão também atinge níveis epidémicos nos Estados Unidos.

 

No Reino Unido, este problema ganhou tal relevância que, em 2018, foi criado o Ministério da Solidão. Um em cada oito britânicos não tinha um só amigo próximo com quem pudesse contar; três quartos dos cidadãos não sabiam os nomes dos vizinhos, 60% dos trabalhadores disseram sentir-se sós no trabalho. Uma realidade aterradora!

Pode parecer inverosímil, mas é uma realidade vivida no Japão, muitas senhoras idosas fazem da prisão uma escolha ativa de vida, “No Japão, os crimes cometidos por pessoas com mais de sessenta anos quadruplicaram nas últimas décadas. Setenta por cento das pessoas desta fixa etária reincidem no crime nos cinco anos seguintes. As entidades prisionais não têm dúvidas de que a solidão é um fator chave nesta tendência”. (Shiho Fukada, Japan´s Prisons Are a Haven for Eldery Women, 2018)

Com a pandemia, os sentimentos de solidão, desconexão e alienação ter-se-ão agravado colossalmente, devido aos meses de confinamento, autoisolamento e distanciamento social. A crise pandémica despoletou as crises económica e social. Já temos sinais de alerta que, rapidamente, poder-se-ão transformar em sinais de emergência social. Infelizmente, concordo, em absoluto, com a afirmação de Rita Valadas, Presidente da Direção da Cáritas Portuguesa, em entrevista concedida ao Público (29 de julho de 2021): “A crise social ainda não chegou. “Esta crise sanitária teve algumas almofadas fortes [moratórias e lay off], mas que não resolvem os problemas.”

Ao contrário do que poder-se-ia pensar, não são apenas as pessoas mais velhas que se sentem afetadas pela solidão não desejada. Ainda de acordo com o estudo da UE, houve um quadruplicar da solidão entre os jovens entre os 18-35 anos, em comparação com 2016.

A solidão tem um impacto altamente negativo na esperança de vida. A investigação evidencia que a solidão é pior para a nossa saúde do que não praticar exercício físico, tão nociva como o alcoolismo, duas vezes mais prejudicial do que a obesidade e, estatisticamente, equivale a fumar quinze cigarros por dia, independentemente do dinheiro que ganhamos, do sexo, da idade ou da nacionalidade. [2]

Com o aproximar das eleições autárquicas, deixo o repto aos candidatos para que priorizem esta questão, estudando e, caso sejam os vencedores, implementado políticas ativas que restaurem as ligações humanas, reponham e densifiquem o tecido da comunidade. Estamos a falar de uma crise muito complexa – a SOLIDÃO – que mesclada com a crise sanitária, económica, social e climática urdem um ecossistema que só poderá ser contrariado com mudanças económicas, políticas e sociais sistémicas.

O dinheiro europeu para o Estado aplicar no combate à crise está a chegar, o famoso PRR terá 465 milhões de euros para investir em respostas sociais para a infância, as pessoas portadoras de deficientes e os idosos até 2026. O senhor Presidente da República não parece totalmente convencido com os méritos do plano: “Foi o plano possível, nas condições possíveis”. Façamos das habituais fraquezas as nossas novas forças e não permitamos que seja distribuído muito pelas castas de sempre, projetando milhares na pobreza endémica, estrutural, geracional que se vive em Portugal.

“Reverter a hipercentralização do País é um imperativo nacional”. (Rui Moreira, Fernando Freire de Sousa e Guilherme Costa, Público, 30 de julho de 2021)
Com todo o respeito que me merecem os autores do artigo, em especial Rui Moreira, não discordando com o que defendem, considero é que, isso sim, REVERTER A CRÓNICA BICEFALIA DO PAÍS É UM IMPERATIVO NACIONAL.
Sugiro, a quem gosta do interior e não aceita a crescente litoralização do País (uma evidência plasmada nos resultados preliminares do último recenseamento), que use e abuse das hashtags #PRR #OQueChegaraAoInterior para que não fiquemos mais pobres, mais isolados, mais sós, mais invisíveis, com menos voz, menos saúde, menos felicidade.

[1] https://www.cigna.com/static/www-cigna-com/docs/about-us/newsroom/studies-and-reports/combatting-loneliness/cigna-2020-loneliness-report.pdf
[2] Holt-Lunstad J, Smith TB, Baker M, Harris T, Stephenson D. Loneliness and social isolation as risk factors for mortality: a meta-analytic review. Perspect Psychol Sci. 2015 Mar;10(2):227-37. doi: 10.1177/1745691614568352. PMID: 25910392.

Julianne Holt-Lunstad, PhD, The Potential Public Health Relevance of Social Isolation and Loneliness: Prevalence, Epidemiology, and Risk Factors, Public Policy & Aging Report, Volume 27, Issue 4, 2017, Pages 127–130, https://doi.org/10.1093/ppar/prx030

 

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