Do Padrão dos Descobrimentos está afastado D. Manuel I, aquele que haveria de querer assumir a história da longa viagem. Poderíamos ponderar vastas razões para a sua ausência, mas a principal estará, a meu ver, diretamente ligada à dimensão de que ele próprio se revestia, pompa e circunstância avessas ao húmus salazarista
O Vaticano fez um selo comemorativo das Jornadas Mundiais da Juventude usando o Padrão dos Descobrimentos. Uma certa opinião pública portuguesa manifestou-se contra tal uso, proclamou que este assumia uma visão colonial que se quer cada vez mais longe. O selo foi retirado. Finalmente os portugueses começam a olhar para a “coisa” com outros olhos.
No início de 2021, por decorrência de um texto que escrevi no Público, o país “emocionou-se” com a proposta de se derrubar o Padrão dos Descobrimentos. O debate foi duro e longo, mas deixou um lastro que não vai desaparecer tão cedo para bem da nossa relação com a História. Estava claro, naquele início de 2021, que essa “implosão” do Padrão deveria ser feita de forma a permitir um outro olhar sobre o artefacto.
O Padrão assume, pelo que encontrei nos arquivos do Ministério das Obras Públicas aquando da investigação que fiz, em 2018, para o meu doutoramento, o que o regime do Estado Novo, em especial Salazar, pensavam da nossa História. Leopoldo de Almeida e Cottinelli Telmo, os seu autores, fizeram a obra inicial em madeira e gesso e o seu fim, provocado por um tornado, haveria de levar a cabeça de Henrique “O Navegador” rio abaixo.
Nos documentos visitados está bem claro que o ditador, naquele tempo de 1930 e quando se organizou a grande exposição do rude colonialismo português, personificaria o Infante do Padrão. O país olhava e via uma grande caravela, que era Portugal do Minho a Timor, tendo ao leme, em reflexo, o lente de Coimbra.
Não se regista outra razão plausível para se encontrarem no processo administrativo, ainda na segunda década do século XXI, textos que nos encaminham para aí e ainda uma foto de Oliveira Salazar junto de um desenho, muito utilizado em livros de época, do busto de Henrique.
A dimensão do ditador assumia, no final da década de 1930, uma leitura transcendental. Vieira Machado, Ministro das Colónias em 1936, aquando da 1ª Conferência Económica do Império, proclamava no seu discurso: “Salazar – o Chefe e o Mestre, que deixou, na sua passagem pelo ministério das Colónias o rasto de luz que é o Acto Colonial, diploma em que fixou os princípios basilares da nossa doutrina ultramarina e que, na presidência do Governo é o sábio orientador da renovação política imperial portuguesa (…)”.
Se a referência ao Chefe era coerente com as visões dos restantes ditadores europeus, já a referência ao Mestre assume aqui uma ligação intemporal ao Mestre Avis, iniciador da Expansão, o princípio de tudo a que Salazar dava, naquela altura, sentido e profundidade.
Atentando na investigação histórica mais recente, importa avaliar fatores que são relevantes para esta observação e que não se confinam numa leitura modular. Não podemos, na visão sobre a relação entre a Dinastia de Avis e o Estado Novo, deixar de ponderar, como Platão nos indicou, outras leituras. As que interagem entre objetividade e subjetividade, entre discurso e experiência e entre realidade e representação.
O Padrão é o exemplo de uma história feita para negar história. Nele existe uma mulher, Filipa de Lencastre, mãe de uma geração que até hoje ninguém entendeu questionar na sua grandeza e aqui representando, ou assumindo também, a simbologia de Maria Santíssima na sua proteção e salvaguarda.
Como seria normal, já que quase todas as figuras do Estado Novo se foram resumindo a isso, a grande maioria dos personagens esculpidos no padrão são operacionais (navegadores, capitães e pilotos) com dimensões e valores discutíveis. António Abreu, Estevão da Gama, Martin Afonso de Sousa, Gaspar Corte Real, Nicolau Coelho, Pero Escobar, Pero de Alenquer e Afonso Baldaia revelam-se num protagonismo excedente perante os grandes capitães que fizeram as viagens. Cristóvão da Gama, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, João Gonçalves Zarco, Gil Eanes e Pero da Covilhã justificam a presença pelo simbolismo, pelas marcas e pelos avanços. Vasco da Gama nunca poderia faltar e Pedro Alvares Cabral comporta-se inevitável enquanto notário oficial de uma chegada urbi et orbi ao hoje Brasil.
Mas o que leva o Estado Novo a incluir Fernão Magalhães? Tão só a mesma presença na história que faz das nossas batalhas de Ourique e de Aljubarrota a autoridade divina do português. Não se poderia aceitar que Espanha ganhasse a criação da viagem de circum-navegação porque ela era, para a estória construída pelo regime salazarista, o elemento final, talvez mesmo o êxtase das glórias de Portugal.
A dimensão oficial dos homens de letras, para além de Camões que passará a ser uma das referências do império messiânico, acanha a reserva de fontes escritas com uns poucos cronistas. João de Barros, Fernão Mendes, Zurara concedem-nos uma leitura homo-heroica que sustentou, talvez ainda sustente, o nosso ego desmesurado.
Se o matemático Pedro Nunes e o santo Francisco Xavier são necessários, Frei Gonçalo de Carvalho e Frei Henrique de Coimbra só se justificam na sua relação com as ordens a que pertenceram e para equiparar os capitães. Jácome de Maiorca, o espanhol, é, no contexto geral dos representados, uma irrelevância.
Mas interessa avaliar a inserção de Nuno Gonçalves. O pintor a quem são atribuídos os Painéis de São Vicente, nunca existiu na ida pelos mares. Gonçalves aparece como que transportando a legitimidade cénica para o Padrão. Nos Painéis podemos não identificar, à partida e sem discussão intensa, o universo geral representado, mas poucas dúvidas pareceram existir sobre a presença inigualável do Infante D. Henrique.
Importa, agora, justificar a história da História pela negação da presença. No Padrão está D. Afonso V, mas não está D. João I, nem D. Duarte, nem D. João II, este sim, o rei que concebeu a grande estratégia. Está Afonso de Albuquerque, mas eliminaram Francisco de Almeida e não assoma Manuel I, o monarca que assistiu ao fulgor e ao início da decrepitude. Está o infante D. Pedro, porque não podia deixar de estar, mas Pedro aparece-nos no fim da fila, como que a fazer uma polifonia, ou a ser, quase, impelido para fora do panteão.
Por último o Infante D. Fernando, a quem a história mais popular conferiu o cognome de Infante Santo. Fernando não foi mais do que o sacrifício de um irmão perante a obsessão, não foi mais que a degradação de um reinado de outro irmão, D. Duarte, a quem só concedemos a elegância de uma escrita de armas. Em Fernando infante regressa a dimensão intemporal que a cada tempo recheia o pensar e o ser do reino, a justificação para que tudo o que de humano se decide e se incrementa tenha uma validação superior, um suporte sagrado. O império intemporal também aqui se confirma.
Olhado o monumento pelo rio Tejo ou pelos Jerónimos, não é possível deixar de constatar os pavilhões de Avis e de contemplar a presença da cruz. A cruz é o símbolo permanente dos Impérios de que já falei. A cruz azul do primeiro rei e as quinas em cruz dos seguintes; a cruz de Avis, agora também verde; a cruz que marcou os mastros das caravelas e das naus; a mesma cruz no estandarte da restauração; sempre a garantia da proteção, sempre símbolo máximo da obediência à tal determinação superior, um país temente e obediente no império de Deus.
Do Padrão dos Descobrimentos está afastado D. Manuel I, aquele que haveria de querer assumir a história da longa viagem. Poderíamos ponderar vastas razões para a sua ausência, mas a principal estará, a meu ver, diretamente ligada à dimensão de que ele próprio se revestia, pompa e circunstância avessas ao húmus salazarista.
Na Oração de Obediência ao papa Júlio II, transmitida por Diogo Pacheco no dia 4 de junho de 1505, ele diz: “Recebei o vosso Portugal, e não apenas Portugal, mas também grande parte de África. Recebei a Etiópia e a imensa vastidão da Índia. Recebei tantos golfos, promontórios, litorais, portos, ilhas, vilas, cidades, reis, numerosíssimas nações como que encerradas numa só mão e que nem sequer pela fama eram antes conhecidas. Recebei a obediência oriental, desconhecida de vossos antecessores, mas reservada para vós, e que, sendo já agora enorme, irá ser por mercê de Deus cada vez maior. Recebei, enfim, o próprio mundo. O mundo? Não, outras terras, outro mar, outros mundos, outras estrelas…” Salazar não gostava deste tipo de visão do Mundo.
Poderemos ter dúvidas sobre uma leitura intemporal, simbólica, imagética, do império que os portugueses foram construindo? Ou não serão sempre os impérios a partir de uma base comum – a relação com um ser superior, personificado ou não, com um deus ou o nosso Deus, nas suas diversas expressões e onde se inclui Nossa Senhora? As respostas são positivas. Não se pode falar de um qualquer império português sem lhe dar, em primeiro lugar, uma dimensão que se revela, a cada tempo, enquanto império da fé.
Mesmo neste nosso tempo se revelam, ainda e profundamente, os alicerces de uma visão de império assente na fé, constata-se no nosso estar enquanto comunidade que não cede numa certa visão do mundo. A conversão, que portugueses e espanhóis levaram à prática, acarretou uma dominadora alteração da perceção do mundo e da vida, implicando novas narrativas sobre o mito de origem. Mais do que uma mudança de fé, o que a ida pelos mares e a ocupação aos territórios fizeram foi impor uma recriação do “eu”. O plano religioso foi, assim, muito relevante, porque através da religião se assentou um infindável processo de normalização judaico/cristã das populações nativas.
Telmo, um dos autores da escultura primeira, mostrou o desagrado a Salazar pela passagem do Padrão a pedra lavrada. Estaria bem ciente do quanto de propagandístico se revelaria naquela construção. Não conseguiu fazer valer a sua opinião. Salazar era mais forte, os que o enturmavam ainda mais convincentes.
Recentemente, o Presidente da República afirmou: “Também isso nos serve para olharmos para trás, a propósito do Brasil. Mas seria também possível a propósito de toda a colonização e toda a descolonização e assumirmos plenamente responsabilidade por aquilo que fizemos.”
“Não é apenas pedir desculpa – devida, sem dúvida – por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é, às vezes, o que há de mais fácil, pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado.”
Estas duas frases, proferidas nas comemorações do 49º aniversário do 25 de abril, dizem muito. Dizem que Portugal e os portugueses devem deixar de olhar o seu passado sem medos, devem reponderar os símbolos desse passado e ter em conta que neles está uma visão de superioridade e de dor infligida ao longo de séculos. O 10 de Junho deixou, há muito, de ser o dia da raça, mas continuamos a olhar essa nossa superioridade como elemento central das nossas sete partidas.
Está a nascer uma outra perspetiva da História, uma outra visão do português colonialista. Ainda bem!