O esquadrão

É suposto que um governo, entrado em funções deva ter inteira liberdade de escolher com quem trabalha e rodear-se de quem lhe merece crédito. E isso não é pecado, é até normal e expectável. Quem o não fizer, tem pouco tino e tacto. É incontornável que entre a tutela e os altos cargos deve existir uma proximidade e uma cumplicidade, que ultrapassam o plano meramente técnico.

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  • 12:50 | Segunda-feira, 13 de Maio de 2024
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Não acompanho, nas estridentes campainhas e nos histriónicos cânticos, o coro afinado que para aí vai, às ordens de maestro pronto e de mordomos com a vara do juiz, zurzindo com crueldade nos costados do governo de Vossas Senhorias, ferreteando as substituições da provedora da Santa Casa da Misericórdia e do director nacional da PSP, para já só essas, e pressurosamente alcunhadas de prematuras.

Com desmesurado atrevimento e desnudez de boas maneiras, até um pouco abrutados de modos domésticos, os puros, com a pia invocação de estarem descontaminados de qualquer instinto persecutório, azoinam o exercício da governação que exige cabeça fresca, desembaraçada, e com liberdade de freios que não a aprisionem nem lhe retirem a inspiração.

Entretanto, a comunicação social aproveita a esclerosada zanga das comadres e dá-lhe o destaque e a cobertura que os leitores e as audiências reclamam, uns e umas sempre no postigo, com instintos mórbidos, à cata de ajustes de contas e à espreita de facas e alguidares, lestos e aguçados.

Houve até quem, levantando o busto e carregando nas tintas, repetindo hábitos antigos, assimilados na profícua e imperene escola maoísta, tenha construído a propósito uma mediana hipérbole, denunciando estar para vir aí um esquadrão de saneamento. Um momento ridente que as câmaras acompanharam com um realismo lustre.


Tenho como claro que, a par do mérito, os cargos superiores da Administração Pública são de absoluta confiança política, absolutamente absoluta. Os nomeados para os altos cargos sabem-no desde o discreto e saboroso convite, antecedido de uma prévia e cautelosa abordagem, normalmente a cargo de segundas linhas. Ninguém vai ao engano. A porta que lhes franqueia a entrada é exactamente a mesma que os ampara na saída. Quem entra à boleia da estrita confiança, sai pelo imperativo da desconfiança. Mala feita e chaves do carro no bolso, fazem parte do caderno de encargos de gente prudente. Sempre assim foi, sempre assim será. O contrário é que seria um absurdo e um equívoco quase delinquente.

Os que se lamuriam, num choro falso, amanhã correm à espadeirada os instalados. Tem o governo a legitimidade, e toda a autoridade, para ir pelo caminho que está a traçar, substituindo quem, no seu entendimento, deve sair. O PS fez o mesmo, com igual rigor e destemor,  imitando o que o PSD e o CDS já haviam feito, e por aí fora, desenovelando até ao 25 de Abril.

É suposto que um governo, entrado em funções deva ter inteira liberdade de escolher com quem trabalha e rodear-se de quem lhe merece crédito. E isso não é pecado, é até normal e expectável. Quem o não fizer, tem pouco tino e tacto. É incontornável que entre a tutela e os altos cargos deve existir uma proximidade e uma cumplicidade, que ultrapassam o plano meramente técnico. A confiança não é uma abstracção nem uma figura de retórica. No manejo da política, não há inocentes nem virgens, por isso cai bem que se afastem os suspeitos, mormente os que têm filiação ou alinhamento partidários. As excepções, raríssimas e cirurgicamente escolhidas, são flores úteis, conveniências tácticas, apenas isso.

E de pouco vale o puxado exemplo da continuidade de Santana Lopes, por renomeação do governo de António Costa, político useiro e vezeiro nestes jogos armadilhados, aleitados nas oblíquas cumplicidades autárquicas, que pouco tiveram de criativas e salubres, até o levaram para trilhos menos escrupulosos.

Importa, contudo, que estas e outras substituições se façam com lisura e decência, o que, pelo andar da carruagem, não me parece ser o caso, com ameaças de enxovalho público, para mal da higiene política, que fica num ralo lodoso.

Quem se dá ao Estado, merece bom trato e modos escorreitos. O resto, o folclore que se faz à volta da fogueira, as queixinhas e as defesas, o ruído e o desconforto, têm o fim último de agitar as águas e animar as clientelas. Faz parte da coreografia política.

O poder tem muito de encenação e nos rituais satânicos que o definem alimenta-se de pantominas e das suas réplicas. No mais, é conversa da treta.

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Publicado em Opinião