Fui, há poucos dias, ao funeral de um amigo. Numa mesa à porta da igreja estavam várias folhas com assinaturas para “uma Iniciativa Popular de Referendo a propor à Assembleia da República sobre a questão da (des)Penalização da morte a pedido”.(…) E no final do curto texto: “A pergunta a submeter a Referendo é a seguinte: «Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-lo a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias?»”.
“Em quaisquer circunstâncias”??? Quem assim coloca a questão não é sério! A circunstância é só uma: a de alguém não poder aguentar mais o sofrimento físico ou psíquico, ou de não querer submeter-se a cuidados paliativos (por melhor que eles sejam ou venham a ser) que até podem atenuar a agonia, mas retirando-lhe a dignidade de uma morte sem entorpecimento da consciência. O padre e teólogo Anselmo Borges coloca como alternativa à eutanásia, a “sedação profunda e continuada.” Então e se eu não quiser ser drogado profunda e continuadamente de modo a perder a consciência dos meus actos, nem sofrer as consequências dolorosas e para mim insuportáveis de tratamentos médicos paliativos?…
Porque o que está em causa é tão só o direito a viver e a morrer com dignidade. Porque o “direito à vida” tão invocado nesta discussão, tem que ter em conta não apenas a vida em abstracto, na mera perspectiva biológica, mas a vida na sua plenitude, com os seus valores intrínsecos: a liberdade e a dignidade.
A revista Sábado foi ouvir 11 missas em Lisboa, Porto e Setúbal, onde os padres apelaram ao referendo com “ataques, piadas e ameaças indirectas”, do género: “matar é esquecer!” ou “Agora são os doentes terminais, amanhã serão os idosos, depois, sabe-se lá quem”. Isto é terrorismo verbal! E nem sequer é sério na perspectiva cristã. Frei Bernardo Domingues, falecido em 2019 (irmão de Frei Bento Domingues), que se dedicou à bioética, no seu livro “Tornar-se pessoa livre, comunicativa e solidária”, embora fosse contra a eutanásia activa, fala “na perspectiva cristã, sem sermos idólatras da vida, nem sacralizarmos o sofrimento (…)” e defende que a todos os trabalhadores da Saúde lhes assiste “o Direito e o Dever Ético de recusarem realizar ou cooperar na administração de fármacos, sabendo que suprimem directa e definitivamente a consciência, impedindo a pessoa de ser capaz de auto-determinação psicológica e ética.” Ora, o que a sedação profunda e continuada provoca não é mais do que a supressão da consciência. E isso é um desrespeito pelos direitos dos doentes, reconhecidos pela Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes, do Ministério da Saúde, que aponta como direito nº 1 dos doentes, “o direito a ser tratado no respeito pela dignidade humana”. E em segundo lugar vem o “direito ao respeito pelas suas convicções culturais, filosóficas e religiosas”. Ora, este direito leva a que o médico tenha de respeitar prescrições ou interdições religiosas, como a “não utilização de sangue e seus derivados em adultos praticantes de determinada confissão [Testemunhas de Jeová]”, mesmo que correndo o risco de morte do doente. Então, no caso de um doente que tenha a convicção “filosófica” de morrer com dignidade, sem sofrimento intolerável e sem se tornar a sombra de si próprio, já não há respeito por este direito do doente?…
Um dos mais famosos e progressistas teólogos contemporâneos, o suiço Hans Küng, com 92 anos, que o Papa João XXIII nomeou como consultor teológico para o Concílio do Vaticano II, ele próprio confrontado com a doença de Parkinson passou a considerar a hipótese de recorrer ao “suicídio medicamente assistido” e no seu livro “Uma Boa Morte”, escreve: ”Da dignidade do ser humano decorre o direito de autodeterminação para a sua vida, para toda a sua vida e, por isso, também para a última etapa desta, a da passagem para a morte. Do direito à vida não decorre em absoluto uma obrigação de viver, de continuar a viver a todo o custo. Segundo os credos judaico, cristão e muçulmano, a vida humana que o ser humano não deve a si próprio, é em última análise um dom de Deus. Mas, ao mesmo tempo, a vida – segundo a vontade de Deus – é também uma missão do ser humano. Assim, somos nós a dispor do nosso próprio testamento responsável (mas não do alheio!). O que vale também para o final da vida, para a passagem para a morte. A eutanásia deve ser entendida como uma ajuda vital última. Do mesmo modo, não deveria imperar aqui forma alguma de heteronomia [conceito kantiano da sujeição do indivíduo à vontade de terceiros ou de uma colectividade], mas essa autonomia que, para os crentes, se funda na teonomia [lei divina].Cada paciente mantém esse direito de autodeterminação que, nos últimos tempos, tem vindo a ser cada vez mais reconhecido pelos tribunais alemães”.
Küng afirma que dois terços (77%) dos alemães, segundo inquéritos recentes, desejam, no caso de sofrerem de uma doença grave, ter a possibilidade de recorrer ao suicídio assistido por um médico, se necessário. “E, ao que parece, são cada vez mais os médicos dispostos a ajudar, embora não a falar do assunto. “ Ninguém deveria ser obrigado a tolerar sofrimentos insuportáveis como se fossem enviados por Deus”.
Na Idade Média, a agonia na morte era considerada pela comunidade como uma forma de purgação dos pecados.
Eu já passei pela morte precoce do meu pai e da minha sogra, ambos vítimas de cancro. E não quero para ninguém uma agonia como a que a minha “segunda mãe” sofreu, cheia de dores, com o corpo cheio de inevitáveis escaras, apesar dos nossos cuidados continuados, até ficar sedada com tanta morfina que já não tinha verdadeira consciência da sua condição.
Até quem ama os animais recorre à eutanásia para evitar que estes sofram quando já não há nada a fazer para lhes atenuar o sofrimento. Mas há pessoas que não têm a mesma compaixão para com os seres humanos.
E como entender a falta de coerência dos bispos portugueses quando diziam que “a vida não é referendável”, que “os direitos fundamentais não devem ser referendados” (e aqui têm razão), e acabam a fazer uma cruzada a favor do referendo contra a eutanásia”?…
Também não cola o argumento da falta de debate, porquanto até o Presidente da República já reconheceu, em 2018, que “este tema teve “um debate muito participado por todos os quadrantes político-partidários, religiosos, sociais”. Quanto aos restantes argumentos, aconselho a lerem o artigo completo de Bruno Maia, médico neurologista, no Público do dia 5.02.2020 (pode ser consultado no portal www.esquerda.net), de onde tiro apenas a seguinte citação:
“Vão dizer-nos que o direito à morte assistida não fortalece a autonomia de um doente porque é o médico que o “mata”. Mas esquecem-se que atualmente já é o médico que decide antecipar a morte de um doente em estado terminal, suspendendo cuidados fúteis ou não iniciando determinados tratamentos que o próprio recusou em testamento vital. Se há diferença entre estas duas situações e a eutanásia, é que nesta última o doente está consciente e toma a sua decisão de forma livre.”
Por último, dirijo-me aos camaradas do PCP. Comprei o Avante para tentar perceber a vossa posição sobre a eutanásia. Duas páginas a repetir os argumentos da(s) igreja(s), embora digam que baseados não na “origem divina da vida”, mas “no respeito pela dignidade da vida”. Esquecem que a dignidade da vida passa pela dignidade na morte, como Saramago sintetizou: “Ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa, você vai ficar aí, ligado a esses tubos e, por isso, devemos aceitar-lhe a morte se é isso que a pessoa quer”.
Quando se esquece a advertência de Engels de que “o Marxismo não é um dogma, mas um guia para a acção”, corre-se o risco de cair no doutrinarismo dogmático, próprio das religiões, que bloqueia a vitalidade do pensamento ligado à acção concreta junto das pessoas que sofrem e que lutam por uma vida digna, sem alienação, até ao fim dos seus dias.