Assuntando melhor a questão de tantos vivas ao nacionalismo vesgo e impuro que por aí grassa, e porque acredito que nada é coincidência, obra do acaso ou azares de consílios.
1. O internacionalismo fez-nos crer numa aldeia única, à escala mundial. Que para essa utopia, tenderiam, a diferentes ritmos, os povos e as nações, num destino inexorável. Os resistentes seriam vencidos pela bondade da ideologia, que faria o seu caminho, vergando os indecisos e os negacionistas.
A globalização, aproximando e juntando, tornando tudo mais ao pé, num caminhar processional, arregimentou mais discípulos para a doutrina. Ambos procuraram convencer-nos de que as fronteiras eram linhas do passado, que as nações já não interessavam, que a independência dos países caminhava para um fim, que todos se abraçavam, num fantástico comum. E que nada havia a fazer para inverter este curso da História. Que os que viajavam na carruagem acabavam por seduzir os que, expectantes e receosos, aguardavam no apeadeiro, vendo no que paravam as modas, antes de se decidirem. Arengavam com a litania de que os mais ricos dariam parte do seu para os que menos tinham, que a solidariedade distribuiria a riqueza por todos, passando por cima do princípio básico de todas as economias: não há almoços grátis.
Dispondo de máquinas pesadas de comunicação e de propaganda, os poderes incutiram a ideia, tão simpática quanto bondosa, transformando um projecto numa fatalidade, uma intenção numa necessidade. Sopraram a boa nova aos ventos, espalhando-a pelos quatros pontos cardeais. E os mais precários, só vendo no futuro sombras e trevas, cederam aos cânticos de sereia, acreditaram na avózinha que escondia o lobo mau. Ao longo das últimas décadas, o conceito de nação, enquanto vínculo e convicção de um querer viver colectivo, unindo território, língua, cultura, identidade e tradições, esboroou-se, desfez-se aos pés da tirania dos estados constituídos.
À conta dos novos tempos, os povos viram desvalorizados os seus emblemas, os seus orgulhos, as suas bandeiras, que passaram a contar para consumo interno, reduzidos à condição de assunto doméstico. Quando tanto de cada um – agricultura, pescas, leis, orçamentos, contas, diplomacia – é decidido por instâncias supranacionais, arrancando-nos o poder de decidir, escasseiam até razões explicativas para uma tão grande passividade popular. E a verdadeira soberania, um padrão que marcava território e jurisdição, que identificava e diferenciava, passou a repartir-se à mesa, por entre os comensais que vieram para jantar, degustando o cozido de cordeiro, sacrificado no altar da alta política, esquizofrénica e porosa.
Talvez neste destrato de assuntos tão queridos ao povo silencioso resida uma parte substantiva das razões que têm levado ao recrudescimento de nacionalismos radicais por essa Europa fora. Quem lidera esses extremismos, sabe-o, e aposta em despertar o descontentamento, que não feneceu, apenas aguarda por quem devolva a esperança aos que dispensam alienar o que lhes pertence, repugnando-lhe o esbulho. Fartos dos que, sem pergaminhos nem autoridade moral, decidem por si, tem esperado pacientemente pela hora de ajustar contas com o presente. E apega-se ao que prometem restaurar o que nestes 50 anos tem sido negligenciado: a língua, o respeito pelos símbolos – a bandeira e o hino – , vistos como algo pré-histórico, o orgulho na sua História, nos seus heróis, na perpetuidade e integridade do seu património, contra os que os vilipendiam, a sua moeda, a conservação dos centros nevrálgicos da economia nacional, a recuperação das fronteiras físicas, como delimitações de um território uno e indivisível. Muros e barreiras. Exclusões e afastamentos. Sem pensar muito, e com ingenuidade bastante, adormece nos braços de quem lhe acena com a restituição do que lhe insufla o ânimo e lhe traz vaidade. Cuidando que voltará a sorrir.
2. Do outro lado, agrupados no “wokismo”, insiste-se nas propostas irrazoáveis e extremistas, assente numa pretensa superioridade moral e intelectual, ofensiva e irresponsável.
3. O modo distante e arrogante de governar, a sacralização fraudulenta do poder, o incumprimento das promessas eleitorais, os escândalos de corrupção, os arranjinhos, as negociatas, a chico-espertice de muitos que fazem carreira e fortuna na política, sem nunca conhecerem um emprego, os miúdos que a política faz gente emproada, os falhados na vida que encontram nos partidos sossego para as suas almas, a quase impunidade dos poderosos, o enriquecimento fácil, as reformas douradas, o álbum a cores de arrivistas e videirinhos levam o comboio descarrilar definitivamente.
Quiçá neste triângulo de razões, se encontrem os factores que explicam o aparecimento em força da extrema-direita ou da direita mais conservadora, presentes mesmo nos governos em Itália, na Croácia, na Hungria, na Eslováquia, na Chéquia, na Finlândia, sem falar da Argentina e dos Estados Unidos. Em Trump, que, surpreendendo, arrasou com o slogan “Make America Great Again” e entusiasmou os descrentes e fez acreditar os desiludidos, os fiéis seguidores do nacionalismo exacerbado encontrarão um farol. E como há uma tendência para seguir a moda, a tragédia anuncia-se.