O cheque “pariu” um só livro

Mais um anúncio pífio, bem revelador da incoerência retórica do discurso político que alimenta a descrença dos jovens na política e nos partidos. E ainda há quem não entenda o seu afastamento da vida política, custa-me aceitar, mas compreendo-os. Reina a descrença e, em alguns casos, o descrédito, algo perigoso, que deve merecer mais atenção e reflexão de quem tem responsabilidade social e política. 

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  • 9:16 | Terça-feira, 11 de Julho de 2023
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Há menos de um mês, Pedro Sobral, responsável da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), aquando da apresentação da Feira do Livro de Lisboa, deu nota das conversações com o Ministério da Cultura para a operacionalização do “Cheque-livro”. A ideia original, apresentada em maio de 2022, passava pela atribuição, a cada cidadão que more em Portugal e que faça 18 anos, de um cheque no valor de 100 euros para a compra de livros, nas livrarias físicas de Portugal. Uma ideia interessante que não se efetivou, mas adulterou. Mais um anúncio pífio, bem revelador da incoerência retórica do discurso político que alimenta a descrença dos jovens na política e nos partidos. E ainda há quem não entenda o seu afastamento da vida política, custa-me aceitar, mas compreendo-os. Reina a descrença e, em alguns casos, o descrédito, algo perigoso, que deve merecer mais atenção e reflexão de quem tem responsabilidade social e política.

A “montanha pariu mais um rato”, o “Cheque-livro”, que começou por ser anunciado com 100€, transformou-se na possibilidade de aquisição de um só livro. O senhor ministro, Pedro Adão e Silva, quer proporcionar aos jovens, nascidos em 2004 e 2005, a “experiência” de “escolher e comprar” um livro numa livraria a sério, daquelas com paredes, prateleiras, sofás e livros…

 

Se estivermos disponíveis para mais um ato de fé, poderemos imaginar que o/a jovem gosta de livros de arte e de fotografia, é fã de Sebastião Salgado e aproveita a oportunidade para investir os 100€ no livro “Amazónia” (TASCHEN). Neste caso, a promessa teórica inicial e o novo discurso prático são coincidentes, não há qualquer incongruência, será adquirido um único exemplar e o valor do “Cheque-livro” será de 100€. Poder-se-á dar o caso, foi assim que adquiri o meu, de o/a jovem beneficiar de um desconto de 50% e o Estado reter metade da verba prevista. Sugiro que seja criada, é imprescindível, uma comissão que esteja atenta às promoções das livrarias, analise os melhores preços e dê instruções claras de quando e onde gastar o “Cheque-livro”.


Se, por outro lado, nos sentirmos enganados e já não acreditarmos na medida, algo que não será desdenhável, ainda nos resta a esperança de acreditar no trabalho da dita comissão. Os peritos nomeados, recorrendo aos mesmos métodos de exigência e rigor, darão instruções para que se comprem boas obras e ao preço justo.

Para esta opção, faço uma sugestão, sem cobrar quaisquer honorários, aos membros da comissão, à APEL e ao Ministério da Cultura, indiquem os livros da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), são de qualidade, com baixo custo (3,15€) e, não vá dar-se o caso de o cheque não passar de mais uma mera ficção, alguns estão disponíveis, gratuitamente, em formato digital… Afinal de contas, talvez a experiência de visitar uma livraria, escolher e comprar um livro possa ter sido uma ideia manifestamente exagerada… Creio não estar enganado quanto ao objetivo do Governo de desmaterializar os manuais escolares. Pode ler-se no programa: “Promover a generalização das competências digitais de alunos e dos professores, apostando na digitalização dos manuais escolares e outros instrumentos pedagógicos (…)” Em 2020, o Governo revelou à Rádio Renascença (RR) que, em setembro, no arranque do novo ano letivo, iria avançar com manuais escolares digitais num grupo de 10 escolas, de diferentes contextos geográficos, diferentes cenários socioeconómicos de implantação da própria escola. Este projeto-piloto previa a escalabilidade, mas, a julgar pela notícia, também da RR, “Diretores das escolas e encarregados de educação falam em “ameaças” e “sanções” caso os livros não sejam devolvidos ou não estejam em condições de reutilização. ANDAEP e CONFAP pedem esclarecimentos ao Ministério da Educação.” (7/7/2023)

 

 

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Publicado em Opinião