O bom general

Ramalho Eanes, mostra-se um homem exatamente como é: de enorme dignidade, de grande coração, consciente de que perdemos o sentido de corresponsabilidade e da nossa dimensão.

Texto Norberto Pires Fotografia Direitos Reservados (DR)

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  • 22:20 | Sábado, 04 de Abril de 2020
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Gosto muito do António Ramalho Eanes. Acho-o honesto, sério, com princípios e um tipo decente. Deu uma entrevista emotiva à RTP, onde disse coisas com as quais concordo, mas muitas outras com as quais discordo. Em 1980, se tivesse idade para votar (era uma criança), não teria votado nele e teria seguido Francisco Sá Carneiro. E não mudei de opinião, apesar de o considerar um homem bom.

Na entrevista, mostrou-se como é. Um comandante militar, um estratega profundamente esclarecido e determinado, um homem fortemente religioso, humilde, corajoso, com uma ideia muito clara do papel das emoções e do medo, apelando à necessidade de reagir perante a adversidade.

Várias vezes afirmou que a humanidade perdeu a humildade e a capacidade de pensar em primeiro lugar nos resultados coletivos, aqueles que têm dimensão civilizacional, apelando a uma nova reflexão sobre a forma como nos organizamos, sobre o papel da solidariedade, da distribuição de recursos, das desigualdades, dos serviços do Estado, do papel do próprio Estado, da sua dimensão e da necessidade de repensar aquilo que deve estar na esfera dos contribuintes para que eles se sintam seguros. Alertou para a soberba com que a humanidade tinha vivido nos últimos tempos, nomeadamente por pensar que a tecnologia que desenvolveu, baseada em ciência e conhecimento, a teria colocado acima de qualquer dano, dando uma sensação errada de tudo poder e a tudo resistir.


Como militar, foi claríssimo na crítica à ausência de estratégia, à incapacidade de ter definido, logo desde o início, um gabinete de crise que fosse capaz de mobilizar o país e as suas instituições para enfrentar aquilo que ele identifica como uma batalha. Uma batalha que encara como um militar, onde o medo é considerado como algo razoável, mas que é necessário saber ultrapassar com determinação. Uma batalha que exige uma linha de comando, uma estratégia, uma primeira linha de ataque ao problema e uma segunda linha de retaguarda, com missões bem definidas, onde cada um dos intervenientes sabe o que tem de fazer. Foi claro em definir que na primeira linha deveria estar a política, as forças de segurança, nós todos como sociedade. Os hospitais nunca deveriam ter estado nessa linha, mas constituir uma retaguarda, bem protegida, que presta serviços a todos sem correr risco de se esgotar: classificou aquilo que se verificou a certa altura, com evidente sinais de colapso dos serviços de saúde, como uma situação em
baraçosa. Uma batalha muito difícil, porque coloca em causa muito daquilo que nos define como seres humanos: seres sociais, livres, que recusam o confinamento e não aceitam uma sina que lhe possam impor.

Mostrou-se um homem exatamente como é: de enorme dignidade, de grande coração, consciente de que perdemos o sentido de corresponsabilidade e da nossa dimensão, procurando refletir, com grande coragem, o caminho que devemos seguir.

No final, a propósito de questões éticas e da necessidade de dar exemplo, a sua alma de militar, de serviço aos outros em primeiro lugar, falou mais alto e disse: “Se necessário, oferecemos [nós os velhos] o ventilador ao homem que tem mulher e filhos”. É uma frase que revela um homem de bom-coração, mas altamente perturbadora e que não pode ser considerada literalmente. Em primeiro lugar, porque os “velhos”, como ele disse, têm um papel essencial na sociedade, que de forma alguma pode ser dispensado e que precisa de ser protegido. Não há futuro sem passado, não há novos projetos sem experiência e ninguém pode chegar mais alto, sem o exemplo daqueles que realizaram os degraus intermédios. Em segundo lugar, a decisão de atribuir um ventilador a este ou aquele não é tomada pelo paciente, mas pelo médico que, no momento da decisão, pondera, tendo por base regras e a sua análise da situação, qual o caminho que deve ser seguido. Em terceiro lugar, porque as questões humanas e éticas são o nosso esteio fundamental que, quando ultrapassadas, nos devolvem a tempos de barbárie e de ausência de princípios que não podemos, de forma alguma permitir. Em quarto lugar, porque de forma alguma a situação não se coloca necessariamente, como no tempo em que Eanes foi militar, entre um “velho” comandante e um dos seus homens com mulher e filhos, mas também, com uma mulher com ou sem filhos, casada (ou divorciada) com um homem ou com uma mulher, ou somente sozinha, sendo muitas as outras alternativas às do homem com uma família tradicional. Em quinto lugar, porque uma mensagem deste tipo sobre dispensar “velhos”, em função de novos, como se fosse uma forma de dar exemplo, sem uma decisão médica de emergência, baseada num caso muito excecional de ausência de recursos (devidamente apoiado por recomendações éticas de exceção), pode legitimar outros comportamentos que não poderemos tolerar: por exemplo, dispensar “velhos” para aliviar a segurança-social e permitir que o “homem com mulher e filhos” possa usufruir de melhores condições.

Eu sei que é somente uma frase infeliz, que não pode ser vista à letra, mas tão somente à luz da nobreza do sentimento genuíno que queria refletir. No entanto, os momentos de crise, sendo também de profunda reflexão, exigem que sejamos ainda mais vigilantes com os princípios e os valores civilizacionais que construímos e não queremos prescindir.

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Publicado em Opinião