O bairro ressuscitou
«Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata (quem?). Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar enquanto cai, tenta […]
«Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata (quem?). Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessários para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.» (Excerto de “1º sonho de Calvino”, d’ O Senhor Calvino, Gonçalo M. Tavares)
Foi anunciada a “morte” do “Bairro da Cadeia”, em Viseu. Demolir-se-iam 100 habitações, sendo os moradores realojados em blocos de apartamentos. Muitos, de avançada idade, não querem sair do bairro que os viu nascer, crescer, criar os filhos e os netos. Estes munícipes apenas reclamam a melhoria das condições de habitabilidade do edificado. Qualquer intervenção de reabilitação urbanística deve considerar o elo afetivo das pessoas com os lugares, traduzido nas experiências pessoais vividas nesse lugar e na construção de uma identidade, ou seja, deverão ser atendíveis os sentimentos de topofilia e de terrafilia.
Considero que todas e quaisquer propostas de medidas políticas territoriais deverão ancorar-se em dois vetores: a promoção do sentido de pertença territorial e a melhoria da qualidade de vida. É igualmente fundamental não olvidar o relevo dos valores que estão subjacentes à interação social: a amizade, a solidariedade, as redes de vizinhança (comemora-se anualmente o Dia Mundial dos Vizinhos ().
Ao quebrarem-se os laços de sociabilidade, especialmente quando falamos de uma população envelhecida, os riscos de exclusão, isolamento e inadaptabilidade são exponenciados.
Ficarei, obviamente, satisfeito se o bairro vier a ser classificado como património municipal. Mas ficarei muito satisfeito se a solução encontrada tiver em linha de conta a história do bairro e a identidade dos seus moradores.
Para já, o novo executivo camarário “trava a demolição, impecável!”
NOTAS:
“Fiquei muito contente. Deviam agora era fazer obras nas habitações“
(Teresa Pávula, 69 anos, moradora)
“Diziam que as nossas casas eram pequenas, mas criámos aqui muita gente”
(Maria dos Prazeres, 87 anos, moradora)