Por tudo e por nada, o português, geneticamente deprimido e definhado, tem uma tendência, diria patológica, para descobrir marcas de heroicidade nos actos mais banais, até os decorrentes da simples assumpção de responsabilidades institucionais.
Qualquer bicho-careta que no cumprimento das suas estritas obrigações profissionais, não fazendo mais do que dele se espera, se destaque da mediania, logo merece encómios e gabos, por norma, excessivos e descabidos.
Quando alguém comete façanha inesperada, logo, despertando da letargia, se forma um processional carreiro de gente devota, relevando o facto, numa alegria exuberante, ungindo-o de óleos santos, ofertando-o como modelo a seguir.
Neste país do desenrasque-se, do tudo ao monte e fé em Deus, legado de D. Afonso Henriques e da batalha de Sacavém, com mouros em demasia, e ainda assim mortos, afogados ou a fio de espada, com a vitória atribuída a intervenção divina da Virgem Maria, desde aí que o planeamento e a programação, preocupações comezinhas, são olhados por cá com estranheza, predicados esdrúxulos, só ao alcance de predestinados e de quem está muito à frente no tempo.
Falo de Gouveia e Melo, o homem das vacinas, que, com competência, fez só e apenas aquilo para que foi contratado, introduzindo, em momento de pânico e insegurança, rigor e disciplina militar num processo que nasceu atabalhoado e apenas precisava de freio que pusesse termo à aventura.
Acontece que o almirante tem cobiça e deitando o pé para fora do chinelo, que lhe é acanhado, solta-se em cada entrevista que procura, cheirando a notoriedade que está ao seu lado. A um ano e meio das eleições presidenciais, o sujeito não se enxerga, não tem a noção dos limites, quebrados que estão os espelhos lá de casa. E, passando ao redor da humildade, que o estorva, afirma, com a desfaçatez dos deslumbrados e a impudícia dos estouvados, sem se rir e sem ter a noção do ridículo, que não afasta a possibilidade de uma candidatura à presidência da República.
Volta e meia, num cálculo preciso, os seus ajudantes de campo, com extensões na comunicação social, à míngua de obra que se veja, penúria que persiste, lembram-nos que ele existe e está vivo. O almirante, um produto acabado das felizes circunstâncias, confunde as situações e escravo da avidez incontrolada quer mais do que aquilo que ele pode dar. Por certo, além de combinar ter mais do que 35 anos e vestir um camuflado, que lhe dá um ar de guerreiro risível, num país que não acorda com bombas nem tem guerra na agenda, pouco mais de superlativo tem a mostrar. Não obstante escassearem virtudes que de todo não se lhe conhecem, julga ter artes e engenhos bastantes para competir pela mais alta magistratura da nação. Auto-estima dilatada, umbigo grande e temeridade cavada, tem que chegue, não é novidade.
A sede é tanta que o militar já se atreve a dizer aos seus que prescindirá de cartazes por ser figura sobejamente conhecida. Talvez se engane, esbarrando na sua própria macaquice. É ambicioso, presunçoso e vaidoso, perigosos vícios. Com acrescentos de pedantismo e convencimento, parece ter-se na conta do que não é. Desde que se cruzou com o território viscoso e inclinado da popularidade, e nele abancou, tomando-lhe o gosto, e lhe chegaram os apelos, em jeitos de sedução, que uns órfãos e desvalidos se lembraram de lhe dirigir, que tudo nele é fabricado, produzido, estudado, artificial, nada é genuíno, espontâneo, livre.
Ficou-me na memória a repreensão pública que dirigiu aos subordinados, vexando-os numa humilhação desnecessária, aquando da sua recusa em embarcarem num navio destacado para acompanhar uma embarcação russa a norte da ilha de Porto Santo. Não foi gesto de líder, foi mais uma embirrice, uma oportunidade que quis aproveitar para se exibir, um tique de autoritarismo que lhe manchou a auréola que nos quer impingir.
Por ser pouco entendido nos jogos sujos da alta política e dos albergues que ela constrói para alimentar a corte dos apaniguados famintos, não percebo a razão singela que leva políticos a alimentar esta presunção estúpida e escandalosa.
Quando a popularidade é bastante para uma candidatura, e há uma completa ausência de pensamento político, sacudida às vezes por uns tímidos e vulgares bitaites inconsequentes, nada mais há a acrescentar sobre a nossa maturidade democrática.
Está jazente, no colo lutuoso da orfandade. Se assim não acontecer, e Melo teimar em ir à liça, confundindo disciplina e hierarquia militares com sociedade civil e o modo de a endireitar, mesmo contando com as cabeças rapadas e os peles vermelhas, aposto no menos mau: o Tino de Rans.