O almirante

Falo de Gouveia e Melo, o homem das vacinas, que, com competência, fez só e apenas aquilo para que foi contratado, introduzindo, em momento de pânico e insegurança, rigor e disciplina militar num processo que nasceu atabalhoado e apenas precisava de freio que pusesse termo à aventura.

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  • 12:20 | Segunda-feira, 12 de Agosto de 2024
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Por tudo e por nada, o português, geneticamente deprimido e definhado, tem uma tendência, diria patológica, para descobrir marcas de heroicidade nos actos mais banais, até os decorrentes da simples assumpção de responsabilidades institucionais.

Qualquer bicho-careta que no cumprimento das suas estritas obrigações profissionais, não fazendo mais do que dele se espera, se destaque da mediania, logo merece encómios e gabos, por norma, excessivos e descabidos.

Quando alguém comete façanha inesperada, logo, despertando da letargia, se forma um processional carreiro de gente devota, relevando o facto, numa alegria exuberante, ungindo-o de óleos santos, ofertando-o como modelo a seguir.


Neste país do desenrasque-se, do tudo ao monte e fé em Deus, legado de D. Afonso Henriques e da batalha de Sacavém, com mouros em demasia, e ainda assim mortos, afogados ou a fio de espada, com a vitória atribuída a intervenção divina da Virgem Maria, desde aí que o planeamento e a programação, preocupações comezinhas, são olhados por cá com estranheza, predicados esdrúxulos, só ao alcance de predestinados e de quem está muito à frente no tempo.

Esses ditos cujos são então vistos com reverência, suscitando atenções e salamaleques que confrangem e metem dó, tão despropositados são. Num ápice, saem da sombra do anonimato e tocam a fama, aparecendo em tudo o que é luzes e celebrações, ocupando o palco. Se são pessoas modestas, gerem o estrelato com saber e medida, certas de que o Homem é ele mesmo e as suas circunstâncias, tudo é relativo e nada é definitivo. Se, porém, é gente vaidosa e ambiciosa, cavalga o momento, surfa a onda, enquanto a maré está de feição. Tudo é oportunidade para se mostrar.

Falo de Gouveia e Melo, o homem das vacinas, que, com competência, fez só e apenas aquilo para que foi contratado, introduzindo, em momento de pânico e insegurança, rigor e disciplina militar num processo que nasceu atabalhoado e apenas precisava de freio que pusesse termo à aventura.

Acontece que o almirante tem cobiça e deitando o pé para fora do chinelo, que lhe é acanhado, solta-se em cada entrevista que procura, cheirando a notoriedade que está ao seu lado. A um ano e meio das eleições presidenciais, o sujeito não se enxerga, não tem a noção dos limites, quebrados que estão os espelhos lá de casa. E, passando ao redor da humildade, que o estorva, afirma, com a desfaçatez dos deslumbrados e a impudícia dos estouvados, sem se rir e sem ter a noção do ridículo, que não afasta a possibilidade de uma candidatura à presidência da República.

Volta e meia, num cálculo preciso, os seus ajudantes de campo, com extensões na comunicação social, à míngua de obra que se veja, penúria que persiste, lembram-nos que ele existe e está vivo. O almirante, um produto acabado das felizes circunstâncias, confunde as situações e escravo da avidez incontrolada quer mais do que aquilo que ele pode dar. Por certo, além de combinar ter mais do que 35 anos e vestir um camuflado, que lhe dá um ar de guerreiro risível, num país que não acorda com bombas nem tem guerra na agenda, pouco mais de superlativo tem a mostrar. Não obstante escassearem virtudes que de todo não se lhe conhecem, julga ter artes e engenhos bastantes para competir pela mais alta magistratura da nação. Auto-estima dilatada, umbigo grande e temeridade cavada, tem que chegue, não é novidade.

O marinheiro mal disfarça que está danado que a oportunidade surja. E, fugindo à incompatibilidade certa, provavelmente recusará em Dezembro o convite manhoso do governo para a renovação por mais 2 anos no cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada, que o colocaria fora da corrida.

A sede é tanta que o militar já se atreve a dizer aos seus que prescindirá de cartazes por ser figura sobejamente conhecida. Talvez se engane, esbarrando na sua própria macaquice. É ambicioso, presunçoso e vaidoso, perigosos vícios. Com acrescentos de pedantismo e convencimento, parece ter-se na conta do que não é. Desde que se cruzou com o território viscoso e inclinado da popularidade, e nele abancou, tomando-lhe o gosto, e lhe chegaram os apelos, em jeitos de sedução, que uns órfãos e desvalidos se lembraram de lhe dirigir, que tudo nele é fabricado, produzido, estudado, artificial, nada é genuíno, espontâneo, livre.

Por detrás daquele ar aparentemente desinteressado, descendo a encosta e correndo pelo vale, há uma raposa astuta, disposta a tomar conta do galinheiro. A expressão de anjo melancólico esconde algo que não sei explicar, que escapa ao meu entendimento, quiçá uma ambição desmedida que não inspira confiança.

Ficou-me na memória a repreensão pública que dirigiu aos subordinados, vexando-os numa humilhação desnecessária, aquando da sua recusa em embarcarem num navio destacado para acompanhar uma embarcação russa a norte da ilha de Porto Santo. Não foi gesto de líder, foi mais uma embirrice, uma oportunidade que quis aproveitar para se exibir, um tique de autoritarismo que lhe manchou a auréola que nos quer impingir.

Por ser pouco entendido nos jogos sujos da alta política e dos albergues que ela constrói para alimentar a corte dos apaniguados famintos, não percebo a razão singela que leva políticos a alimentar esta presunção estúpida e escandalosa.

Salvo honrosas excepções, coincidentes com momentos extraordinários na vida dos países, os militares querem-se nos quartéis, cuidando da caserna, perorando sobre estratégias nas messes do oficialato. E isso não é desprimor, muito menos ingratidão.

Quando a popularidade é bastante para uma candidatura, e há uma completa ausência de pensamento político, sacudida às vezes por uns tímidos e vulgares bitaites inconsequentes, nada mais há a acrescentar sobre a nossa maturidade democrática.

Está jazente, no colo lutuoso da orfandade. Se assim não acontecer, e Melo teimar em ir à liça, confundindo disciplina e hierarquia militares com sociedade civil e o modo de a endireitar, mesmo contando com as cabeças rapadas e os peles vermelhas, aposto no menos mau: o Tino de Rans.

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Publicado em Opinião