Não são raras as vozes que anunciam a derrota definitiva da esquerda no mundo ocidental. Tal decorre do facto de virmos assistindo a uma perda de representatividade dos partidos socialistas e sociais democratas, nos países europeus, e a um progressivo apagamento dos partidos da esquerda mais moderada na América Latina.
Acontece que os politólogos e os fazedores de opinião partem de um erro que faz com que se vá construindo a tal imagem de derrota – a existência de uma só esquerda.
Os movimentos socialistas e comunistas foram cambiando ao longo dos séculos XIX e XX. A marca central da separação estava na valorização da liberdade individual, na capacidade de se fazer do pluralismo o centro da vida política e no equilíbrio entre a prestação de bens e serviços pelo Estado e a iniciativa privada, aspetos que fizeram o socialismo democrático do sul da Europa e a social democracia do centro e do norte.
Vivemos o período posterior à Grande Guerra com base no compromisso dos valores indicados, valorizando o diálogo social e a participação dos trabalhadores na sociedade. Também vivemos a grande transformação que levou a que as oportunidades chegassem a quase todos, que as bases de uma sociedade – educação, saúde e segurança social – fossem de tal forma transversais, que nem as forças da direita moderada as questionassem.
Com o fim do comunismo de influência soviética nasceu a ideia de que só restava a social democracia à esquerda. Mas foi tempo curto.
Desde a década de 2000, os socialistas democráticos e os sociais democratas verificaram, em alguns países, um processo de desligamento da realidade. Vivemos estes últimos vinte e cinco anos em processos de questionamento que levaram a um certo radicalismo da esquerda democrática e que a retiraram do sítio onde sempre deveria ter estado – a moderação.
O primeiro desses momentos foram as invasões do Iraque que tiveram o seu ponto alto em 2003. Influenciada pelas esquerdas mais radicais, olhando Tony Blair como um vendido ao imperialismo americano, a esquerda democrática deixou-se vencer na contestação da Terceira Via, o movimento mais inovador e transformador das últimas décadas. As juventudes socialistas passaram a irmanar com as juventudes leninistas, maoistas e trotskistas, criando uma linha comum de intolerância e de radicalismo que vivia, ainda vive, na cabeça dos filhos da classe média-alta que se fizeram esquerdistas através dos livros de inspiração marxista.
O segundo momento foi o da grande crise de 2008, que, nascida nos Estados Unidos, alastrou por todo o mundo e criou enormes problemas no Estado Social. A esquerda unida das juventudes, com o apoio de velhos senhores do socialismo que, depois de o terem colocado na gaveta o revindicavam agora, contestava ainda a Terceira Via, ampliava e consagrava uma máxima que é profundamente falsa, a de que a social democracia se havia deixado implicar pelo neoliberalismo.
O terceiro momento foi o da intervenção insana do FMI e da União Europeia na reconstrução das economias do sul da Europa. A crise foi tal, que as juventudes unidas ganharam a legitimidade política de poderem ambicionar governos de esquerda implicados pela esquerda radical.
Mas a esquerda democrática passou por outras crises. A primeira foi a de não reconhecer o mérito. O mérito não como exercício de exclusão, mas como forma de elevação. Ao consagrarem os sistemas públicos de educação e saúde, sem qualquer possibilidades de serem medidos e avaliados, o que provocaram foi a normalização e a enormização dos aparelhos públicos, o aumento da despesa e da ociosidade. Este é um dos problemas que hoje se colocam a muitos países ocidentais, a despesa pública está a impedir o desenvolvimento económico da Europa fruto do excesso de recursos a que o Estado deita mão.
A esquerda democrática também deixou de poder recrutar no universo privado, as suas elites passaram a resultar de grupos fechados de certas universidades e da endogamia partidária. A maior parte dos dirigentes, que depois são governantes, não consegue ter uma vida social, profissional e cultural implicada por diferentes visões do mundo. Tudo é muito igual, é a generalização dos “amigos de Alex”. É por isso que quando chegam ao poder o medo os assalta, impõem regras para tudo, limites para tudo, param tudo. E mesmo quando não param, obrigam a uma leitura única sobre os problemas e as soluções, são incapazes de se abrir a outros mais preparados e mais inteligentes.
É exemplo desta endogamia partidária o último chanceler alemão. Incapaz que foi, de ter mundo para além da política onde chegou como assessor, afetado pelas ideias mais radicais de contestação ao livre mercado e à visão atlântica da Europa, somava a ausência de sentimento, a implicação de uma política mecânica, a total repulsa pela boa disposição e pelo sorriso. O SPD teve a maior derrota deste que foi criado.
Temos hoje, em muitos países, uma nova realidade no socialismo democrático ocidental. Ele hoje é quase revolucionário e não reformador; é muito parasitário e não desenvolvimentista; é habitualmente triste e incapaz de um mínimo de empatia. Empatia, palavra que não raras vezes é parte dos discursos. Muitos dos que usam o termo só chegam a metade do seu significado – entendem o mundo do outro, mas não a partir da ótica do outro, sim da sua. É a arrogância levada ao extremo, são os elitismos leninista, maoista e trotskista no seu esplendor.
No mundo de hoje, em que o extremismo, a maldade, a distopia, a arrogância e a falta de cuidado estão a assumir um papel determinante na governação mundial, não podemos combater com as armas do radicalismo no discurso e na ação. As agendas identitárias não podem o ser alfa e o ômega do debate, a cultura do cancelamento não pode subir aos níveis da discussão partidária que até chega a matar os que sempre militaram nos partidos moderados. A atenção aos mais necessitados e, principalmente, a resposta aos que não querem ser “coitadinhos” deve voltar a ser o nosso grande objetivo político. A classe média, que não quer ser dependente do Estado, tem de voltar a ter nos socialistas e sociais democratas o seu espaço de representação eleitoral.
Mas os socialistas democráticos devem, ainda, ser política próxima e compromisso, boa governação, sentido de serviço. Devem ser promotores de liberdade e de equidade, devem combater a corrupção de todos os tipos, devem compreender a realidade de cada povo sem terem a soberba de obrigar a uma leitura única do mundo. Continuarmos a doença de que tudo deve ser público, mesmo que nada funcione, vai levar-nos ao fim da esperança que sempre foi a igualdade de oportunidades. Disso sabem bem muitos dirigentes dos partidos de esquerda ao colocarem os seus filhos em escolas privadas, ao se socorrerem de seguros para irem a hospitais privados e para garantirem uma reforma mais descansada. Mimetizam, quase em absoluto, o poder soviético.
Se caminharmos no sentido do regresso ao povo, negando o aparelhismo, continuaremos a ter o socialismo democrático como espaço político e ideológico de futuro. Se marcharmos obstinados contra os moinhos de vento, passaremos à história como mais uma das tantas belas ambições que nunca se concretizaram plenamente.
Têm-me perguntado, porque mesmo afastado dos lugares de representação institucional e partidária continuo a fazer comentário político, quem poderão ser os ministros de um governo do PS. Eu não sei responder. E isso preocupa-me. Ninguém vota às escuras, ninguém dá uma carta branca a um putativo chefe de governo se ele não for claro nos seus propósitos e nas suas equipas. É isso que espero destes dois meses de campanha – ideias e pessoas. Ideias e pessoas que sejam quase tudo o que acima disse.
Pedro Nuno Santos demonstrou sentido de responsabilidade quando analisou o tema da imigração. Tem demonstrado, foi esse o seu percurso governativo e é essa a sua origem, que só as empresas podem pagar melhores salários. Mas para isso os portugueses têm de acreditar no seu governo, conhecê-lo. Está na hora do PS dizer ao que vem. Sem elitismos, sem frases feitas, sem amarras.
Ascenso Simões
Gestor e ex-Membro do XVII Governo Constitucional