Nunca a esquerda democrática foi tão necessária

No mundo de hoje, em que o extremismo, a maldade, a distopia, a arrogância e a falta de cuidado estão a assumir um papel determinante na governação mundial, não podemos combater com as armas do radicalismo no discurso e na ação.

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  • 16:18 | Quinta-feira, 27 de Março de 2025
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Não são raras as vozes que anunciam a derrota definitiva da esquerda no mundo ocidental. Tal decorre do facto de virmos assistindo a uma perda de representatividade dos partidos socialistas e sociais democratas, nos países europeus, e a um progressivo apagamento dos partidos da esquerda mais moderada na América Latina.

Acontece que os politólogos e os fazedores de opinião partem de um erro que faz com que se vá construindo a tal imagem de derrota – a existência de uma só esquerda.

Os movimentos socialistas e comunistas foram cambiando ao longo dos séculos XIX e XX. A marca central da separação estava na valorização da liberdade individual, na capacidade de se fazer do pluralismo o centro da vida política e no equilíbrio entre a prestação de bens e serviços pelo Estado e a iniciativa privada, aspetos que fizeram o socialismo democrático do sul da Europa e a social democracia do centro e do norte.


Vivemos o período posterior à Grande Guerra com base no compromisso dos valores indicados, valorizando o diálogo social e a participação dos trabalhadores na sociedade. Também vivemos a grande transformação que levou a que as oportunidades chegassem a quase todos, que as bases de uma sociedade – educação, saúde e segurança social – fossem de tal forma transversais, que nem as forças da direita moderada as questionassem.

Em Portugal, as grandes conquistas sociais são obra dos socialistas democráticos. A escola universal, a saúde para todos tendencialmente gratuita, o regime de pensões que apoia qualquer um, mesmo os que não se integram em regimes contributivos.

Com o fim do comunismo de influência soviética nasceu a ideia de que só restava a social democracia à esquerda. Mas foi tempo curto.

Desde a década de 2000, os socialistas democráticos e os sociais democratas verificaram, em alguns países, um processo de desligamento da realidade. Vivemos estes últimos vinte e cinco anos em processos de questionamento que levaram a um certo radicalismo da esquerda democrática e que a retiraram do sítio onde sempre deveria ter estado – a moderação.

O primeiro desses momentos foram as invasões do Iraque que tiveram o seu ponto alto em 2003. Influenciada pelas esquerdas mais radicais, olhando Tony Blair como um vendido ao imperialismo americano, a esquerda democrática deixou-se vencer na contestação da Terceira Via, o movimento mais inovador e transformador das últimas décadas. As juventudes socialistas passaram a irmanar com as juventudes leninistas, maoistas e trotskistas, criando uma linha comum de intolerância e de radicalismo que vivia, ainda vive, na cabeça dos filhos da classe média-alta que se fizeram esquerdistas através dos livros de inspiração marxista.

O segundo momento foi o da grande crise de 2008, que, nascida nos Estados Unidos, alastrou por todo o mundo e criou enormes problemas no Estado Social. A esquerda unida das juventudes, com o apoio de velhos senhores do socialismo que, depois de o terem colocado na gaveta o revindicavam agora, contestava ainda a Terceira Via, ampliava e consagrava uma máxima que é profundamente falsa, a de que a social democracia se havia deixado implicar pelo neoliberalismo.

O terceiro momento foi o da intervenção insana do FMI e da União Europeia na reconstrução das economias do sul da Europa. A crise foi tal, que as juventudes unidas ganharam a legitimidade política de poderem ambicionar governos de esquerda implicados pela esquerda radical.

Estávamos no ponto de conseguir o que muitos movimentos de esquerda revolucionária ambicionaram ao longo do século XX – fazer desaparecer o socialismo democrático, instalar uma forma de governar onde a igualdade era o nirvana, uma ambição que os sovietes proclamaram para consagrarem as ditaduras sangrentas que se viveram ao longo do século XX.

Mas a esquerda democrática passou por outras crises. A primeira foi a de não reconhecer o mérito. O mérito não como exercício de exclusão, mas como forma de elevação. Ao consagrarem os sistemas públicos de educação e saúde, sem qualquer possibilidades de serem medidos e avaliados, o que provocaram foi a normalização e a enormização dos aparelhos públicos, o aumento da despesa e da ociosidade. Este é um dos problemas que hoje se colocam a muitos países ocidentais, a despesa pública está a impedir o desenvolvimento económico da Europa fruto do excesso de recursos a que o Estado deita mão.

A esquerda democrática também deixou de poder recrutar no universo privado, as suas elites passaram a resultar de grupos fechados de certas universidades e da endogamia partidária. A maior parte dos dirigentes, que depois são governantes, não consegue ter uma vida social, profissional e cultural implicada por diferentes visões do mundo. Tudo é muito igual, é a generalização dos “amigos de Alex”. É por isso que quando chegam ao poder o medo os assalta, impõem regras para tudo, limites para tudo, param tudo. E mesmo quando não param, obrigam a uma leitura única sobre os problemas e as soluções, são incapazes de se abrir a outros mais preparados e mais inteligentes.

É exemplo desta endogamia partidária o último chanceler alemão. Incapaz que foi, de ter mundo para além da política onde chegou como assessor, afetado pelas ideias mais radicais de contestação ao livre mercado e à visão atlântica da Europa, somava a ausência de sentimento, a implicação de uma política mecânica, a total repulsa pela boa disposição e pelo sorriso. O SPD teve a maior derrota deste que foi criado.

Temos hoje, em muitos países, uma nova realidade no socialismo democrático ocidental. Ele hoje é quase revolucionário e não reformador; é muito parasitário e não desenvolvimentista; é habitualmente triste e incapaz de um mínimo de empatia. Empatia, palavra que não raras vezes é parte dos discursos. Muitos dos que usam o termo só chegam a metade do seu significado – entendem o mundo do outro, mas não a partir da ótica do outro, sim da sua. É a arrogância levada ao extremo, são os elitismos leninista, maoista e trotskista no seu esplendor.

No mundo de hoje, em que o extremismo, a maldade, a distopia, a arrogância e a falta de cuidado estão a assumir um papel determinante na governação mundial, não podemos combater com as armas do radicalismo no discurso e na ação. As agendas identitárias não podem o ser alfa e o ômega do debate, a cultura do cancelamento não pode subir aos níveis da discussão partidária que até chega a matar os que sempre militaram nos partidos moderados. A atenção aos mais necessitados e, principalmente, a resposta aos que não querem ser “coitadinhos” deve voltar a ser o nosso grande objetivo político. A classe média, que não quer ser dependente do Estado, tem de voltar a ter nos socialistas e sociais democratas o seu espaço de representação eleitoral.

Mas os socialistas democráticos devem, ainda, ser política próxima e compromisso, boa governação, sentido de serviço. Devem ser promotores de liberdade e de equidade, devem combater a corrupção de todos os tipos, devem compreender a realidade de cada povo sem terem a soberba de obrigar a uma leitura única do mundo. Continuarmos a doença de que tudo deve ser público, mesmo que nada funcione, vai levar-nos ao fim da esperança que sempre foi a igualdade de oportunidades. Disso sabem bem muitos dirigentes dos partidos de esquerda ao colocarem os seus filhos em escolas privadas, ao se socorrerem de seguros para irem a hospitais privados e para garantirem uma reforma mais descansada. Mimetizam, quase em absoluto, o poder soviético.

Se caminharmos no sentido do regresso ao povo, negando o aparelhismo, continuaremos a ter o socialismo democrático como espaço político e ideológico de futuro. Se marcharmos obstinados contra os moinhos de vento, passaremos à história como mais uma das tantas belas ambições que nunca se concretizaram plenamente.

Vamos para eleições. Pedro Nuno abandonou, há muito, as ideias ingénuas do frentismo de esquerda que deixou de dar para garantir governos que não sejam pasmados. Mas há um perigo que está à espreita – muitos dos próximos ainda têm o perfil que acima identifiquei. Governar é hoje coisa para gente que saiba do pais e do mundo, não gente que se limite a dezoito horas de pesquisa no google e não se pareça com nada.

Têm-me perguntado, porque mesmo afastado dos lugares de representação institucional e partidária continuo a fazer comentário político, quem poderão ser os ministros de um governo do PS. Eu não sei responder. E isso preocupa-me. Ninguém vota às escuras, ninguém dá uma carta branca a um putativo chefe de governo se ele não for claro nos seus propósitos e nas suas equipas. É isso que espero destes dois meses de campanha – ideias e pessoas. Ideias e pessoas que sejam quase tudo o que acima disse.

Pedro Nuno Santos demonstrou sentido de responsabilidade quando analisou o tema da imigração. Tem demonstrado, foi esse o seu percurso governativo e é essa a sua origem, que só as empresas podem pagar melhores salários. Mas para isso os portugueses têm de acreditar no seu governo, conhecê-lo. Está na hora do PS dizer ao que vem. Sem elitismos, sem frases feitas, sem amarras.

 

Ascenso Simões

Gestor e ex-Membro do XVII Governo Constitucional

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