As capitais costumam ser os principais cartões de visita de cada país. É sobre a paisagem urbana que vos quero falar, mais propriamente sobre as ações levadas a cabo para que se mantenham asséticas e atrativas, para aqueles que as desejam visitar.
Lisboa e Paris, ávidas da higienização das suas ruas, encetam ações a vários níveis e não hesitam, caso se apresente como necessário, em “varrer o lixo para debaixo do tapete”.
As operações de cosmética urbana ganham uma dimensão relevante sempre que há eventos globais. Faltam pouco mais de 100 dias para o arranque dos Jogos Olímpicos de Paris (JO) (26 de julho a 11 de agosto e paralímpico 28 de agosto a 08 de setembro). Uma competição global que movimenta quantidades estratosféricas de dinheiro. As receitas de bilheteira devem alcançar os 1,4 mil milhões de euros, representando cerca de 32% de um orçamento global de 4,4 mil milhões.
Com este volume de negócios, seria expectável que todos se sentissem felizes, beneficiassem com a realização do evento na sua cidade e melhorassem as suas vidas. Uns quantos (poucos) fazem fortuna. Alguns beneficiam em larga escala. Outros, os indesejados, são alvo de limpeza social. Pessoas em situação de sem abrigo, refugiados, indocumentados, trabalhadores do sexo e marginais são expulsos da cidade das luzes. Paris esconde a miséria, transferindo-a para outras cidades. Intensificou-se a vaga de expulsões com a aproximação do arranque dos JO. As forças policiais muscularam as intervenções contra as pessoas mais frágeis, focando-se na base da pirâmide. Yaya, em situação de sem abrigo, trabalhador ilegal, em entrevista concedida ao Libération (22/03/2024) disse: “Nós concordamos em mudar-nos, porque é verdade que não dá boa imagem para os Jogos. Nós não queremos que o mundo nos veja assim. As pessoas dizem-nos: Você dorme na rua. Eles insultam-nos no TikTok.”.
Quem são os verdadeiros beneficiados e em que medida? Há muitos meses que as associações denunciam e documentam a invisibilidade das pessoas mais vulneráveis nos espaços públicos parisienses. É evidente o desmantelamento dos “acampamentos”, as evacuações, o afluxo das forças de segurança, tornando mais difícil a vida das pessoas que dependem do espaço publico para sobreviver. O poder público afasta as populações frágeis, invisibiliza estas mulheres e estes homens, despoja-os dos seus direitos, roubando-lhes a dignidade que lhes resta.
“A Câmara de Lisboa tenta tirar sem-abrigo dos Anjos” (Publico, 12 de abril). Também estará agendada uma operação na Avenida de Ceuta e na Quinta do Loureiro? Ou os critérios terão na sua base o título concedido pela Time Out Global, em 2021, que elegeu os Anjos como um dos bairros mais cool do planeta. Será por esta razão que “Vozes críticas dizem ser uma tentativa de limpeza”? Nesta iniciativa parece haver um “plus” em relação à “nettoyage social” parisiense: “A câmara refere ainda a necessidade de dar “bem-estar” aos moradores.” Com toda a certeza não estará a edilidade a referir-se aos que ali sobrevivem, sem direito ao código postal e que sujam o postal ilustrado das sete colinas, do Tejo, do icónico elétrico 28, da luz de Lisboa. A “Luz de Lisboa” torna visível o fado de sucessivas gerações de pobres, contingentes engrossados com as migrações. O pastel de Belém e a voz da Amália despertam os sentidos de quem nos visita, algo que não queremos perturbar. Também em Lisboa, no período que antecedeu a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) houve quem acusasse a Câmara de querer “limpar” as pessoas em situação de sem-abrigo. Nesse período, terão levado a efeito várias ações para que os sem-abrigo abandonassem a área da Avenida Almirante Reis.
Para uma sociedade, como defendeu o Papa Francisco, em que todos…todos…todos contam, os grandes eventos devem deixar uma verdadeira marca social. Parece distante, mas 2030 chegará rapidamente e com ele a realização do Mundial de Futebol. Portugal será, conjuntamente com Espanha e Marrocos, um dos países organizadores da “edição centenária e especial” (Gianni Infantino, Presidente da FIFA) que será realizada em três continentes porque o jogo de abertura se realizará no Uruguai, onde decorreu o primeiro mundial de sempre (1930).
A esta distância, havendo visão e sentido de missão, poder-se-á definir uma estratégia que contribua para eliminar ou mitigar os problemas dos mais frágeis da sociedade, não adensado a cronicidade da invisibilidade, mas definindo uma estratégia que defenda a sua integridade e humanidade. O pior que nos poderá acontecer, enquanto comunidade, é sermos atropelados pelo rolo compressor do lucro fácil, da voracidade das negociatas e da tentação da construção de obras faraónicas.