Não me lembro…

Questionado várias vezes sobre a intervenção do descendente, o PR sempre a negou, dizendo depois, com a pressão a crescer, não se lembrar. Acabou a dar uma conferência de imprensa em que deu conta de, afinal, ter encontrado um e-mail do filho sobre o assunto, e de a sua assessora para os assuntos sociais, Maria João Ruella, ter estabelecido contactos directos com o Hospital de Santa Maria.

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  • 13:19 | Segunda-feira, 11 de Dezembro de 2023
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O processo do pedido de naturalização das gémeas luso-brasileiras demorou 5 meses e a luz verde para a concessão da dupla nacionalidade demorou 14 dias.

Ao que se diz, tudo dentro da normalidade, mas num país em que a burocracia é lei, e tudo anda devagar, devagarinho, parecem-me prazos muito curtos. Oxalá o erro de julgamento seja meu.

As bebés, que têm a sorte de familiares seus se darem com a mulher – ou a ex-mulher? – de Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República, têm a infelicidade de sofrer de atrofia muscular espinal. Com o Cartão de Cidadão reuniam condições para entrarem no sistema do SNS, o que aconteceu, começando por um hospital público do Algarve, através de uma prima da mãe das meninas, que reside nessa região. O médico encaminhou o caso para o Hospital D. Estefânia, em Lisboa, que acabou por nunca receber as doentes. O director da neuropediatria deste hospital recusou a utilização do fármaco, sustentado na “ausência de ganhos clínicos evidentes”, mas trocou e-mails, durante cerca de 1 mês e ½, com a família, sugerindo que contactassem o Centro Hospital Universitário de Lisboa Central, entidade onde estavam inseridos e a quem cabia autorizar a intervenção.


Com a entrada em cena de advogados da família, o neuropediatra do Hospital D. Estefânia afastou-se do processo, recomendando o seu encaminhamento para o governo, o Ministério da Saúde e o Infarmed, na prossecução da tentativa de acesso ao medicamento, Zolgensma, um dos maiores caros do mundo. Entrado o pedido de autorização do medicamento no regulador, no dia seguinte estava autorizado. Ao que se diz, tudo dentro da normalidade, mas num país em que a burocracia é lei, e tudo anda devagar, devagarinho, parece-me um prazo muito curto.

Três meses depois, as meninas foram tratadas com uma injecção de toma única, considerando a neuropediatra que as pacientes reuniam os “critérios clínicos para o acesso”. A médica responsável pelo tratamento fez questão de mencionar que a primeira consulta decorrera na sequência de intervenção do secretário de estado da saúde, Lacerda Sales, junto do respectivo departamento médico. A médica pretenderia com esta indicação manifestar, denunciando-o, o desagrado pela pressão política. No meio de tudo isto, um e-mail do director de neuropediatria do hospital de Santa Maria a alertar o PR para uma “eventual interferência” do filho.

Questionado várias vezes sobre a intervenção do descendente, o PR sempre a negou, dizendo depois, com a pressão a crescer, não se lembrar. Acabou a dar uma conferência de imprensa em que deu conta de, afinal, ter encontrado um e-mail do filho sobre o assunto, e de a sua assessora para os assuntos sociais, Maria João Ruella, ter estabelecido contactos directos com o Hospital de Santa Maria.

Saltar por cima do governo, não é coisa que um assessor faça. Um lapso, que deixa um rasto de desconfiança e suspeição. E, pegando nas sábias palavras do PR, que fazem doutrina, os decisores políticos também são responsáveis pelos actos daqueles que escolheram…

Seguindo o protocolo, sem prejuízo da troca de correspondência entre o filho do Presidente, a Casa Civil e a assessora, os serviços da PR, encaminharam a correspondência respectiva, que, afinal, não era uma carta, mas sim dois relatórios médicos, para o gabinete do PM, que a fez chegar ao ministério competente, o da saúde. Na carta que capeia os relatórios médicos, a Casa Civil da PR refere o diagnóstico e garante que a família enviara o histórico para o Conselho de Administração do Centro Hospital de Lisboa Central, ou seja, o Hospital de S. José.

Como chegaram então as gémeas, sem número do SNS, ao Hospital de Santa Maria, já com uma consulta marcada, para um tratamento de 4 milhões de euros? Pergunta para 1 milhão de dólares.

Entretanto, no controlo dos danos, o PR desfez-se do filho e da família, ao dizer que esta não é eleita, querendo, porventura, dizer que não está sob escrutínio público.

Nuno é uma réplica feia de Lacerda. Nenhum dos dois tinha que, mesmo sem mandato, ser interlocutor do PR e do PM, em assuntos que não lhes dizem respeito e à sua margem, supostamente sem o seu conhecimento.

Acontece que a carta que os médicos enviaram ao director clínico do hospital de Santa Maria, pessoa que recebeu as alegadas pressões e as fez cumprir, pessoa que recebeu o email e o encaminhou para a directora que marcou a consulta, desapareceu. Sim, a carta desapareceu, mas Levy Gomes, neuropediatra do Santa Maria, tê-la-á facultado já a quem de direito.

E Nuno Rebelo de Sousa, enquanto decorria o processo, ter-se-á encontrado por várias vezes com Lacerda Sales, no Ministério da Saúde, reuniões de que o ex-governante também não se lembra.

Maldita amnésia.
Depois de uma recusa inicial, que o director de neuropediatria desconhecia, o tratamento acabou por ser, finalmente, administrado. Vem agora o Hospital D. Estefânia desmentir o PR que referiu que o filho lhe tinha dito que havia contactado aquela unidade, que, por sua vez, o teria informado ser Santa Maria o hospital adequado para se apurar se era viável o tratamento.

Sem esforço, toda esta história nos faz acreditar na existência da cunha. O caso está a ser analisado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, objecto de uma auditoria interna do Centro Hospital Universitário de Lisboa Norte e inquérito da PGR. Acredito que o PR não tenha tido intervenção directa no caso, mas, no mínimo, foi imprudente. Talvez o seu estilo repentista tenha ajudado. Por vezes, sai bem, e é simpático, noutras nem tanto. Não lhe ficou bem a forma como deixou que o seu nome ficasse colado a eventuais influências num processo pouco claro. Fica diminuído e prejudicado aos olhos da opinião pública que tem a percepção de que foi sensível a um encosto.

A verdade é que estamos numa atmosfera de ocultos que nos faz desconfiar de uma teia de cumplicidades entre Belém e S. Bento (veja-se o bloqueio do PS à audição de Marta Temido e Lacerda Sales na AR). Há pouca transparência no caso em apreço, há versões contraditórias e factos sem explicação plausível. E esquecimentos oportunos, convenientes, mas imperdoáveis. Não se esquece uma mensagem de um filho sobre um assunto inusual. Não se esquece uma audiência, em dose dupla, ao filho do PR. Dê-se a volta que se quiser dar ao assunto, há enigmas por decifrar, mistérios por desvendar.

Por que raio o filho do PR se há-de interessar por estas meninas? Por que motivo envolveu a PR, sabendo quem era o seu titular? Por que razão se esqueceu do seu sobrenome e de como isso poderia abrir portas e precedentes? Com que intenções abordou gabinetes que podiam ter a chave-mestra? Só podia ser para obter facilidades e saltar obstáculos. Dizer que era para meter uma cunha para benefício de amigos, será exagero? Cá para mim, e pelo que se sabe, era para isso mesmo, sem poupar nas palavras. Nuno meteu uma cunha. E das grandes. Um jeitinho, cai sempre bem entre amigos, mas ficou-lhe mal. Devia saber que nas instâncias políticas de um certo nível o seu apelido é uma carta de conforto. Não se devia esquecer disso. Ou talvez o quisesse lembrar, quem sabe?

Agora, depois de termos o PM sob suspeita, de vermos a especulação à volta da PGR, só nos faltava a interrogação sobre a actuação do PR, que se quer neutra e escrupulosa, em matérias de pedidos, recusando a promoção de privilégios, no respeito pela ética republicana.

Estamos todos fartos destas dúvidas sobre a lisura de comportamentos, sobre as decisões escorreitas, sobre as explicações enxutas. E, por favor, sejam transparentes. Não se esqueçam.

(Foto DR)

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