Os leitores de coisas de bicicletas, sobretudo destas que andam para trás no tempo, conhecem o Movimento de Unidade Democrática, que se apresentou para disputar as eleições de 1945 e derrubar Salazar. Talvez não saibam, porém, como se reuniam esses oposicionistas, o que discutiam, como se entendiam e desentendiam. Ainda pedi ao Anastácio para entrar numa dessas reuniões. Ele mandou-me falar como o coronel Belisário Pimenta. Foi uma maneira de me calar.
– Não diga isso, senhor Escrivão. Se eu lhe sugeri que procurasse Belisário Pimenta é porque ele é homem para ter ido a uma dessas reuniões e contado como foi.
Na verdade, Belisário Pimenta regressou a Coimbra e, em final de Novembro de 1945, participou num encontro político do MUD. Do que lá viu e ouviu, escreveu nos seguintes termos:
Coimbra:
Novembro 28
De volta a Coimbra, apressei-me a resolver a minha situação perante a comissão de propaganda oposicionista. E assim, ontem, assisti, em casa do advogado Neves Rodrigues, à Cumeada, à sessão da comissão distrital do Movimento de Unidade Democrática abreviadamente chamado MUD.
Vim de lá um tanto ou quanto assarapantado. Eu já tinha pensado que essa unidade não seria perfeita; mas não calculei que, aqui, ela fosse tão falsa. Pobres Portugueses! Parece que só se unem para o mal; parece que só para o absolutismo são capazes de manterem certa união?
Depois dos cumprimentos e de apresentar as minhas desculpas e agradecimentos, a sessão continuou com a exposição que o licenciado Diniz Jacinto fez da sua missão a Lisboa para assistir a uma grande reunião de delegados do MUD de todo o País.
E aqui começou um dize-tu, direi-eu entre o dr. Jacinto e o advogado Neves Rodrigues. Este queixava-se de menos atenção daquele para com a comissão que, aliás, se não queixou; declarou-se melindrado (o Português é melindroso como uma açucena!) por não sei que atitude do outro. O Diniz Jacinto explicou, com a aparência da melhor boa fé[,] a sua atitude e a missão; e confesso que gostei da maneira como ele expôs o assunto. Mas os ares turvaram-se… e eu pensei em intervir. A certa altura, o dr. Alberto Martins de Carvalho pretendeu lançar água na fervura e apaziguar os ânimos; mas os resultados foram poucos. A atmosfera estava carregada com fumo de cigarros e com a má vontade dos outros membros da comissão para com a casmurrice do Neves Rodrigues. Esta má vontade era visível. O comerciante Sílvio Seco manifestou-se com ar aborrecido; o operário Gil Roque teve vários encolheres de ombros; e o dr. Martins de Carvalho estava em brasas, não só pelo seu temperamento calmo e tolerante mas também, possivelmente, por calcular o efeito que tal espectáculo exerceria sobre mim, chegado de novo e cheio de dúvidas.
Saímos de lá, já passava da meia-noite, sem nada resolvido. Cá fora, o ar fresco e com certa humidade, refrescou os pulmões. O dr. Martins de Carvalho seguiu para o lado dos Olivais e eu segui para casa acompanhado pelo dr. Diniz Jacinto, Sílvio Seco, Baeta de Campos e Gil Roque. Durante uns passos, viemos calados como se cada um tivesse a consciência da falta de êxito do movimento oposicionista; eu é que rompi o silêncio com esta observação que podia ser roubada ao Conselheiro Acácio mas que vinha a calhar:
– O Português não está bem sem discutir e questionar…
E fazendo ligeira paragem apesar do frio, concluí:
– Há mais de 40 anos que ando metido em andanças semelhantes… Pois meus Senhores nunca vi outra coisa senão isto…
Ficaram todos a olhar para o chão. Eu recomecei a andar; e até à Rua de Alexandre Herculano não se falou mais no assunto.»
O senhor Belisário Pimenta chegou a casa e, como já era tarde, deve ter ido dormir. No dia seguinte, abriu a porta do escritório, aproximou-se da secretária e sentou-se no trono. Rodeado pelos seus livros e papéis, tomou nota das impressões que acabo de transcrever.