Nos últimos meses, fruto de uma maior atenção às questões relativas ao funcionamento dos serviços centrais do Ministério da Defesa, têm sido colocadas muitas e importantes questões sobre o papel das Forças Armadas (FA’s) e sobre o seu financiamento.
Este debate parece pouco pertinente para a generalidade dos portugueses, tudo porque olhamos para as relevantes questões de soberania de forma muito superficial, tudo porque ainda vivemos com as implicações da Guerra Colonial e da descolonização que marcaram as gerações que nos governaram nas últimas cinco décadas.
A invasão da Ucrânia pela Rússia fez aproximar a guerra das nossas casas, permitiu uma outra consciência do papel da política de Defesa no contexto das políticas públicas. Até 2022, a nossa relação com os conflitos bélicos tinha sempre ligação com a visão colonialista e insuportável de que os povos em desenvolvimento não se sabem governar e por isso se guerreiam, ou com as políticas belicistas dos blocos. Porém, a crise ucraniana mudou tudo.
Com esta nova circunstância, o que poderíamos esperar do Ministério da Defesa? Tão só uma linha estratégica clara, uma afirmada capacidade de liderança, uma essencial força reformadora para a recomposição das forças.
Entre 2016 e 2019, tive a responsabilidade de coordenar os deputados socialistas na Comissão de Defesa Nacional. Ao longo desse tempo fui assinalando as disfuncionalidades internas ao ministério.
Uma das questões mais relevantes da política do Ministério da Defesa é mesmo a remodelação da sua estrutura civil. Porém, para que essa reforma seja feita, é necessário um conhecimento das máquinas administrativas, dos sistemas de gestão públicos, das obrigações de reporte e de permanente sindicância. Convenhamos, temos tido mais governantes conhecedores das teorias de Defesa e Segurança do que gestores de recursos e de redes.
O último ano foi esclarecedor – todos os serviços da administração direta e indireta do Ministério de Defesa terão de ir ao osso para se construir uma nova realidade organizacional e para se confirmarem em novas formas de accountability.
O debate público assenta, depois, em duas premissas: as Forças Armadas estão subfinanciadas (1); têm falta de recursos humanos (2). Lamento desiludir, as FA’s não estão subfinanciadas nem têm recursos humanos a menos. Gastam mal o dinheiro e alocam incorretamente as mulheres e os homens ao seu serviço.
Existe um processo de revisão constitucional em curso e, se se tivesse uma visão de conjunto dos problemas mais relevantes que a CRP comporta, deveríamos estar a discutir o papel das FA’s num país com uma democracia consolidada como é o nosso.
Um segundo problema das FA’s é o do pequenez estratégica dos seus programas de recursos. Lamento desiludir, a Lei de Programação Militar e a Lei de Infraestruturas Militares são dois instrumentos arcaicos, limitadores do bom governo, insuficientes no que diz respeito às balizas de gestão e monitorização. Com o atual modelo de decisão sobre a programação militar os 5,6 mil milhões de euros que estão previstos até 2034 não serão executados e a adequação desse investimento à realidade de umas FA’s modernas não será fácil de reconhecer.
Sempre tive para mim que estes instrumentos deveriam ser um só, garantias de bom uso e de alocação criteriosa dos recursos financeiros. Mas também sempre defendi que um programa de recursos financeiros deveria ser acompanhado de uma programação de recursos humanos e isso nunca aconteceu.
Na minha atividade parlamentar sempre tentei uma visão geral das grandes opções de defesa, mas o que verificamos continua a ser a valorização minifundiária do poder pessoal de cada chefe, de cada centro de decisão.
Já atrás falei do anacronismo que se vive nos serviços centrais do Ministério da Defesa. Importa olhar os ramos e as suas disfuncionalidades.
A Lei de Programação Militar não é adequada às realidades do país que somos, disse. A Armada, que está na cabeça de cada português como herdeira de feitos quinhentistas, não pode deixar de encarar as obrigações que o nosso país assume na defesa do seu mar, seja Zona Económica Exclusiva ou seja a Plataforma Continental que queremos ampliar. Ninguém nos leva a sério com as nossas delineações operacionais, ninguém se sente ameaçado, nos tráficos ou nas passagens de espionagem, quando usa o nosso território.
Precisamos de estruturar melhor as capitanias, de libertar o Instituto de Socorros a Náufragos para a Autoridade de Proteção Civil e a Polícia Marítima para a GNR. Precisamos de garantir quadros mais alargados e missões mais sustentáveis em tempo e em meios, precisamos de fazer progredir na carreira por dotação global e sem garrotes.
Portugal, com as suas responsabilidades no Mediterrâneo e no Atlântico, esquece que é através da Armada que se faz política de migrações, que se faz política de cooperação. Mas isso pouco tem interessado.
Claro que, para além da saída de serviços do universo da Armada para outras entidades, importa uma secagem da vida opulenta que a Armada também comporta. No tempo de hoje ser oficial da Armada deve observar dignidade relevante, mas não deve garantir fausto e desperdício. Os oficiais superiores sabem, no seu íntimo, que falo no uso de recursos do Estado em restaurantes e em messes, em edifícios desnecessários e inadequados à operação, falo de abusos a coberto da Condição Militar e da proclamação de perigos imaginários a que estaria sujeita a Família Militar.
O segundo grande universo de intervenções é o que interessa à Força Aérea. Este é o ramo mais desprezado das nossas FA’s. A Armada opera helicópteros (?), o Exército quer ter uma força aérea dos pequeninos. Este desprezo vai ao ponto de a sua valorização, no contexto dos chefes, ser mínima.
A realidade atual de contratação privada de aeronaves para funções de Estado deve caminhar para um universo muito reduzido; a existência de recursos civis na Força Aérea não pode ser mais adiada. Há duas décadas que concluímos que o Estado deve ter meios aéreos próprios para o interface Defesa/Segurança; há uma década que ficou claro que a Força Aérea é quem tem o conhecimento para desenvolver a aquisição e a operação desse interface.
Também neste ramo precisamos de garantir quadros mais alargados e missões mais sustentáveis em tempo e em meios, precisamos de fazer progredir na carreira por dotação global e sem cernelhas, precisamos de dar dignidade à estrutura impedindo o seu êxodo.
Mas a Foça Aérea tem, ainda, de fazer a sua parte e que se liga à realidade lisboacêntrica da sua atividade. A rede deve ser repensada, a disposição de meios e de unidades deve ser reavaliada, o recrutamento deve ser garantido a partir de territórios vários.
Por último, e nos ramos, o Exército. Vão desculpar-me, mas o país não pode continuar com a realidade atual deste ramo.
Quando perguntava sobre a razão de existirem, na linha da A24 e entre Chaves e Viseu, quatro unidades militares com portas abertas e se todas fossem reunidas no RI 14 ainda ficavam edifícios livres, ninguém me respondia com critério. O Exército é o ramo onde o tempo ficou parado, onde é preciso entrar a matar.
A estrutura do Exército, que nasceu das voluntariosas reformas de Aguiar Branco, é ineficaz, inatrativa, cara e lamentavelmente decrépita.
O Exército tem um Comando de Pessoal no Porto onde todos os oficiais se sentem homiziados; tem um Departamento de Finanças segregado do Comando de Logística, uma estratégia de controlo do Orçamento por parte do Chefe do Estado Maior; tem Santa Margarida às moscas; tem Tancos às moscas e tem quartéis onde não lembra ao diabo. Acabe-se com toda essa despesa imobiliária, com soldados de 1,50m a pintar paredes de porta de armas, concentrem-se as brigadas em dois locais e permita-se, como muitos outros países fazem, que os militares possam ter vidas noturnas e famílias nas cidades mais próximas desses grandes aquartelamentos.
Só o que se poupa em recursos humanos e materiais com o encerramento do RI 10 permitia resolver a indignidade que é um soldado não ter o fardamento completo nos dias de hoje.
Com a ida do Regimento de Comandos para Tancos a Academia Militar concentrava-se toda na Amadora e deixava os edifícios históricos para outras funções; com uma melhor gestão dos comandos e departamentos centrais permitir-se-ia que Portugal fizesse desenvolver no Norte do país as suas capacidades para as guerras do século XXI, seja na robótica, na cibernética, na relação das forças terrestres com as aeronaves não tripuladas.
Também importa que o recrutamento, a formação e a doutrina se vejam em fileira única. Um cidadão que queira ser soldado saí do Exército ao fim do tempo de contrato com mais vícios do que os que tinha quando entrou. E com menos autonomia, porque encontra uma estrutura onde o obedecer para cima e o mandar para baixo é a regra, mesmo que a regra seja absurda. Precisamos e formar soldados com duplo reconhecimento. Nada impede que se façam planos de formação no Exército que permitam atribuir certificação de agentes de segurança, de agentes da natureza, de agentes de proteção civil, de bombeiro sapador. Só que o Exército ainda pensa existir para marchar em parada, o que também não sabe fazer com aprumo e, por isso, vai levando o poder político a acreditar que a solução está em por estrangeiros a jurar a bandeira de Portugal.
E no mesmo sentido interessa que a certificação dos sargentos se faça com a atribuição de diploma superior CET nas áreas da robótica, da mecatrónica, da topografia, da mecânica, uma vocação acrescida que as academias dos ramos devem, sem discutir a sua natureza, assumir.
No meio de todo este cenário há, ainda, a responsabilidade pública das forças armadas. É uma falácia afirmar que as FA’s gravitem num território de confidencialidade ou secretismo. Tudo o que estas consideram secreto está hoje em fontes abertas. É por isso que a sindicância pública das contas das FA’s, de cada ramo e de cada centro de custos, deve ser pública, e essa obrigação não pode deixar de se exigir a partir da publicitação dos orçamentos e das contas do CEMGFA e dos Ramos na internet, bem como o edificado alocado a cada uma das entidades. Haverá mais manifestos, haverá mais figuras a reclamar do que se legislará, mas os portugueses merecem mais dos militares para que lhe possam dar mais também.
Por último, uma referência à meia reforma que alocou ao CEMGFA novas competências. As estruturas de guerra são hábeis em vencer pelo cansaço, mas importa ir mais longe. Todos os serviços que não são essenciais à operação, ao core de cada ramo devem passar para as estruturas centrais de Defesa. Um médico pode sê-lo a partir de um quadro central, um músico não precisa de ser de um ramo, um padre não precisa de estar vestido de cinzento, um informático não carece de estar dedicado a uma unidade eternamente, os serviços de administração militar não precisam de ter mangas de alpaca formados nas academias. Precisamos de flexibilidade, precisamos de carreiras distintas, precisamos de operacionais que o sejam mesmo, que saibam da poda.
Como também não carecemos de pompa na presença insular. Os ramos devem entender-se para ter mais operação e menos morteiros a abrir torneios de golf, para olharem mais os riscos e menos os dias da autonomia. Com a atual forma de estar, que é mais simbólica do que operacional, quem perde é a população no que lhe poderemos e deveremos oferecer. E não podemos esquecer que as Forças Nacionais Destacadas, que nunca estiveram nem vão estar em causa, não podem ser um pequeno oásis no meio da decadência, que devem ser mais uma das excelentes esferas em que as estruturas castrenses se mobilizam.
Olhámos as forças, mas também há a chamada pomposamente indústria de defesa. Portugal precisa de fazer uma limpeza geral de empresas, históricos, compromissos e vinculações sub-reptícias. Aproveite-se esta oportunidade para fazer de novo, criar sinergias, fechar o que tem de ser fechado. E ganhe-se uma nova ambição para fixar no país indústria privada de defesa, entidades com investigação que se ligue aos centros de ponta, ferramentas que permitam alastrar para o setor industrial português tecnologia avançada. Depois da Embraer e da Thales, tardamos a abrir novas portas, a garantir que somos um país fiável.
Não haverá um caminho para o cumprimento dos objetivos de gastos públicos em Defesa, que possa suplantar os ambiciosos critérios NATO (os tais 2% do PIB), sem uma visão pública e privada do investimento, sem uma opção multifunções dos meios. Os militares devem ter sempre presente tais critérios.
A este extenso texto havia muito a acrescentar. São enormes os desafios que Portugal tem pela frente. Vencer o amiguismo, vencer o corporativismo, vencer o elitismo, vencer o despesismo, vencer o segregacionismo e vencer ócio são tarefas ciclópicas que não podem esperar. Precisamos de um poder político que tenha coragem, precisamos de chefes militares sem medo.
Sempre que aporto ao Teatro Nacional São João, no Porto, para ver um qualquer espetáculo, olho para o elegante edifício do lado esquerdo. Foi em tempos a Messe de Oficiais do Exército. Hoje está fechado para obras. Destinar-se-á a férias de oficiais na reserva e na reforma a um preço exorbitante de 8 euros por dia. Ali poderiam ser alojadas 25 famílias, ali poderiam ser acomodados 50 estudantes do ensino superior que até poderiam ser filhos de militares. Mas nada!
É trabalhoso encontrar pessoas que encaixem no critério, mas não se pode dar como perdida a batalha.
Ascenso Simões