Ilegalidades na Justiça?

Perante a inquestionabilidade factual, o MP comunica que vai abrir um inquérito à fuga de informação. É o que lhe compete dizer, embora seja conjecturalmente tácito ninguém já acreditar no resultado destes inquéritos internos e corporativistas, que dão geralmente em “águas de bacalhau”.

Tópico(s) Artigo

  • 12:03 | Quarta-feira, 19 de Junho de 2024
  • Ler em 4 minutos

Algures, nos insondáveis meandros da Justiça portuguesa, há quem, por inconfessados motivos, se empenhe em transgredir a Lei, protegido por um pesado e opaco véu de impunidade e de imunidade.

A “Operação Influencer” soma e segue nesta matéria. Desta feita, escutas e fotografias do processo em segredo de Justiça foram divulgadas por um canal televisivo, a CNN, eventualmente empenhada na descredibilização de António Costa, no momento crucial da sua escolha para o cargo de presidente do Conselho Europeu.

Perante a inquestionabilidade factual, o MP comunica que vai abrir um inquérito à fuga de informação. É o que lhe compete dizer, embora seja conjecturalmente tácito ninguém já acreditar no resultado destes inquéritos internos e corporativistas, que dão geralmente em “águas de bacalhau”.


As escutas divulgadas foram feitas a conversas telefónicas travadas entre o então primeiro-ministro e o ministro João Galamba. As fotografias, feitas por agentes da polícia criminal, referem-se aos 75 mil euros apreendidos no gabinete do chefe de gabinete de Costa, Vítor Escária.

Entretanto, os 50 signatários do Manifesto pela Justiça “Por uma reforma da Justiça em defesa do Estado de Direito Democrático”, muito críticos da actuação do MP, voltaram a pedir explicações à PGR, Lucília Gago sem, até ao momento, obterem resposta alguma. Situação aliás recorrente na sequência das polémicas acções que têm dado questionável foco mediático ao MP.

Do Manifesto dos 50, transcrevemos alguns pontos relevantes, até hoje sem resposta:

“Apesar de constitucionalmente protegido, as recorrentes quebras do segredo de justiça, com a participação ativa de grande parte da comunicação social, dão azo a julgamentos populares, boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais elementares direitos de muitos cidadãos, penalizando-os cruelmente para o resto das suas vidas, mesmo quando acabam judicialmente inocentados. Um regime que aceita essa forma de proceder perde uma parte significativa da sua autoridade moral perante aqueles de quem se quer distinguir em termos éticos e de respeito pelos Direitos Humanos. A violação das regras constitucionais da investigação penal é realmente um problema de regime.

A juntar a esta perturbante realidade, tem-se também assistido na investigação penal a graves abusos na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente com a proliferação de escutas telefónicas prolongadas, de buscas domiciliárias injustificadas e, mesmo, de detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade.

As montagens do já habitual espetáculo mediático, nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso, têm confundido intencionalmente a árvore com a floresta, formatando a opinião pública para a ideia de que todos os titulares de cargos públicos são iguais e que todos são corruptos até prova em contrário. Esta forma perversa de atuar, com contornos mais políticos do que judiciários, tem produzido um óbvio desgaste no regime e, por consequência, reforça o descontentamento popular e abre as portas ao populismo e à demagogia, tanto mais que muitos processos se eternizam sem conclusão ou acabam sem acusação ou sem condenação judicial. Este procedimento torna-se ainda mais crítico, quando os resultados práticos do combate à corrupção em Portugal se reduzem normalmente a um preocupante insucesso e a uma manifesta incapacidade de combater tão grave fenómeno, por quem tem a especial responsabilidade de o fazer.

A prolongada passividade perante esta iníqua realidade permitiu que tivéssemos atingido o penoso limite de ver a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os Tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador. A agravar a situação, o País continuou a assistir ao inconcebível, quando, tendo decorrido longos cinco meses entre o Primeiro Ministro se ter demitido, na sequência do comunicado da PGR, e a sua cessação de funções, o Ministério Público nem sequer se dignou informá-lo sobre o objeto do inquérito nem o convocou para qualquer diligência processual. Além de consubstanciarem uma indevida interferência no poder político, estes episódios também não são conformes às exigências do Estado de Direito Democrático.

Apesar da gravidade do sucedido e da crítica pública generalizada, todas estas falhas, com fortes repercussões na nossa vida democrática e na confiança no sistema de justiça, não tiveram qualquer consequência interna na condução destas investigações e dos atos processuais que delas decorrem, por força de um funcionamento e de uma cultura de perfil corporativo, que manifestamente predomina no Ministério Público. Ao contrário de todos os demais poderes constitucionais, a Justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente administrada em nome do Povo. O sentimento de impunidade que a ineficácia do sistema, por si só, já transmite para a sociedade, é, assim, agravado pelo défice dos mecanismos de avaliação interna existentes e pela falta de mecanismos de escrutínio externo descomprometido com o próprio aparelho judiciário. Ora, numa democracia constitucional, como a nossa, nenhum titular de cargo público é irresponsável pelas suas decisões e pelas suas falhas perante a coletividade.

O poder que, através de sufrágio livre e democrático, os cidadãos delegam nos seus representantes diretos para, em seu nome, definirem e executarem as diversas políticas setoriais, não encontra, em Portugal, expressão efetiva no caso da política criminal. A definição desta cabe constitucionalmente ao poder político, mas na sua execução magistrados do Ministério Público, sem qualquer mandato constitucional, têm, na prática, um poder sem controlo, quer externa, quer internamente, desde logo, pela assumida desresponsabilização da Procuradora-Geral da República pelas investigações.

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Opinião