Hoje faço greve

O mesmo se passa com os cuidados de saúde hospitalares. Se eu necessito de 30 minutos para consultar adequadamente um utente, parecerá solução proporem que seja premiada por, nesses 30 minutos, assistir a três em vez de um? Onde é que, nesta equação, é valorada a qualidade dos cuidados?

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  • 15:39 | Quarta-feira, 05 de Julho de 2023
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O que move esta greve está longe de ser o que, à primeira vista, parece: não, não estamos só a querer negociar a grelha salarial.

Aquilo que queremos que entendam – o Ministério da Saúde e os nossos utentes – é que é pela sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde que nos debatemos.

A pandemia que nos assolou veio deixar à beira da ruína este edifício que já mostrava algumas fissuras nas suas paredes outrora tão sólidas. Mas os problemas já se anteviam, e a vontade política era na altura, como agora, nenhuma para os enfrentar.


Não nos limitamos a pedir revisão das grelhas salariais – embora isso seja obviamente importante, se atendermos a que Portugal é um dos países da União Europeia onde os médicos são mais mal remunerados e a classe profissional que mais poder de compra perdeu na última década.

Queremos condições de trabalho justas – para nós e para aqueles que tratamos.

A solução não está em premiar uma produtividade bacoca expressa em números em vez de qualidade. Vejamos: mais de 1,6 milhões de portugueses não têm médico de família – e a maioria dos médicos de família tem já ficheiros de utentes demasiado grandes para poder atender devidamente às necessidades de todos. Perante isto, a solução não passa, obviamente, por atribuir mais doentes a cada médico de família – sob pena de os utentes terem um médico de família designado, mas que, factualmente, não tem capacidade para lhes prestar cuidados (ou pelo menos, com a mínimo de qualidade).

O mesmo se passa com os cuidados de saúde hospitalares. Se eu necessito de 30 minutos para consultar adequadamente um utente, parecerá solução proporem que seja premiada por, nesses 30 minutos, assistir a três em vez de um? Onde é que, nesta equação, é valorada a qualidade dos cuidados?

Queremos que os médicos internos, pilar do Serviço Nacional de Saúde, que constituem um terço dos médicos que nele trabalham e que são a garantia da sua continuidade, tenham acesso a uma formação digna e a uma carreira que se inicie imediatamente aquando da sua formação.

Queremos horários equiparados ao da restante função pública, de 35 em vez de 40h semanais. Aceitamos a possibilidade, mas não a imposição da exclusividade – impensável com a remuneração que atualmente auferimos no SNS.

Não aceitamos que nos obriguem a trabalhar mais 350 horas por ano além das 40h semanais (que facilmente resvalam para mais meia dúzia, porque o tempo é curto para todo o trabalho, sendo que estas horas não programadas não são remuneradas). Isto equivaleria a trabalhar mais 7h por semana, todas as semanas! Admitir que as horas extraordinárias são necessárias é, por si só, sinal de que o SNS está doente, porque o trabalho extraordinário deveria, em qualquer função, ser absolutamente excecional e não algo previsivelmente necessário, como é neste momento.

A excessiva carga de trabalho, a extensão do horário com as horas extra, a possibilidade de vermos retirado o direito ao descanso compensatório – tudo isto coloca em causa a qualidade na prestação de cuidados e aumenta exponencialmente o risco a ocorrência do erro médico. Custa a crer que algo tão óbvio não mereça a atenção dos decisores!

Queremos poder decidir o que é melhor para os nossos doentes, de acordo com a legis artis, sem que as nossas decisões sejam castradas pela visão economicista de que o melhor é o mais barato – seja na prescrição, seja na realização de exames complementares de diagnóstico. Não podemos aceitar que fechem os cordões à bolsa da nossa saúde quando o dinheiro nunca falta para salvar instituições bancárias e engrossar os bolsos dos “amigos”.

Queremos que as nossas reivindicações sejam ouvidas, e que as melhorias se estendam aos enfermeiros, técnicos superiores, assistentes operacionais e a todos os que se debatem diariamente pela saúde dos outros.

Aos meus utentes, reforço a mensagem: queremos melhores condições, para podermos garantir que o Serviço Nacional de Saúde nunca vos falhe e que eu e todos os meus colegas possamos cuidar de vós da melhor forma que sabemos.

Hoje faço greve. E amanhã também. Por mim, pelos meus utentes e pelo SNS. 

 

 

(Fotos DR)

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Publicado em Opinião