O arrendamento obrigatório de casas devolutas, conhecendo os portugueses, é um tiro na credibilidade do Governo. Retire-se e esqueça-se.
Pode parecer estranho, mas a política pública de habitação tem ciclos tão longos quantos os da agricultura ou da floresta, estão agarradas ao território e às realidades que este impõe.
Portugal teve, no final da década de 1970 e durante toda a década de 1980, enormes carências de habitação. Foram muitos os programas de natureza pública e também foram imensas as iniciativas de natureza cooperativa.
O Fundo de Fomento a Habitação (FFH) construiu milhares de casas nessas décadas, seguindo as iniciativas das Caixas de Previdência que haviam começado antes da Revolução de Abril. A partir de 1984, quando se consolida o escopo das atribuições e competências dos municípios, a política de habitação foi transitando da administração central para as autarquias locais e estas, por iniciativa própria ou favorecendo projetos da iniciativa privada ou social, passaram a “mandar” na habitação.
Ao mesmo tempo, os municípios assumiram também a responsabilidade a definição da política de solos, tendo o nosso país, por essa razão, situações muito díspares quando se fala em disponibilidade de habitação e dos preços de mercado desta.
Nas duas primeiras décadas deste século, o país viveu várias situações muito marcantes que nos trouxeram à situação que hoje vivemos. A primeira foi a da acelerada litoralização e urbanização do país. Esta nova realidade pressionou as cidades; A segunda, a que teve ligação com a crise de 2009. Durante muitos anos a construção civil parou, muitos artistas qualificados emigraram, as empresas perderam capacidade financeira para investir; A terceira foi a que levou a que muitos municípios iniciassem um processo de aperto na sua quadrícula territorial, elaborando e fazendo aprovar planos de ordenamento muito restritivos que aumentaram o preço do m2; A quarta foi a decorrente da pandemia somada às baixas taxas de juro. Na pandemia muitos portugueses fizeram poupanças extraordinárias que quiseram aplicar, mas os bancos não pagavam nada pelo dinheiro. Ora, a compra de habitação, como pé de meia, fez com que o mercado fosse pressionado de forma anormal, sem que essa nova realidade se transportasse para mercado de habitação e do arrendamento.
Há ainda outras razões que podiam ser aqui elencadas, como por exemplo a existência de terrenos expectantes na Alta de Lisboa, que são propriedade de grandes fundos internacionais, e que dariam para construir 14 mil novos fogos… Mas olhemos o dia de hoje.
Independentemente de quem governasse, a situação seria sempre, no tempo atual, muito difícil. Promover a construção de uma habitação unifamiliar nunca se faz em menos de cinco anos, e um bloco de habitação coletiva nunca se concretiza em menos de uma década.
Em 2017 começámos a ouvir António Costa falar do seu grande projeto de ter em construção, aquando dos 50 anos do 25 de abril, tantas casas quantas as necessárias para resolver o problema habitacional dos portugueses e que se estimavam em 26 mil para todo o país. Nessa altura, antes da pandemia e da guerra, a ideia seria usar os fundos do Portugal 2020 e do Portugal 2030 para cumprir esse promessa, mas tudo mudou.
Quando se fez o levantamento das necessidades, o país já carecia de mais de 35 mil habitações, e os fluxos de imigração irão elevar esse número para valores próximos dos 42 mil fogos.
Por tudo isso, as Casas de Abril, que integravam o grande programa de Costa em 2017, serão hoje muitas mais.
Não se podem esquecer os últimos três anos de política de habitação levada a cabo por Pedro Nuno Santos e Marina Gonçalves, os membros do Governo que assinaram os contratos-programa para os tais 26 mil fogos a construir até 2026. Como seria péssimo que se olvidasse o enormíssimo investimento que está a ser feito em residências para estudantes universitários, 15 mil camas, que, só por si, irão contribuir para a menor pressão no mercado de habitação familiar.
Sendo a situação emergente, o Governo estudou e fez aprovar um vasto conjunto de iniciativas que os portugueses devem analisar friamente e sem as marcas que o debate público esquizofrénico lhes está a conceder.
Podemos dividir o pacote aprovado em três grupos:
1º Grupo – o das medidas que não merecem questionamento
Permitir o uso de imóveis de comércio e serviços para habitação, flexibilizar a aprovação de projetos, criar o balcão único de arrendamento, beneficiar o arrendamento pelo Estado para subarrendar, isenção de IRS sobre mais-valias na venda de habitação ao Estado e aos municípios, são medidas essenciais;
Ampliar as fontes de financiamento aos municípios para realização de obras coercivas, aprovar uma linha de crédito para os privados que construam, ampliar os incentivos fiscais ao arrendamento e à construção, permitir ao inquilino o registo do arrendamento, alterar a taxa de IRS para os arrendamentos de longa duração, apoiar as famílias perante o aumento das taxas de juro nos empréstimos bancários, são medidas que olham para a realidade atual de forma muito atenta.
Um apoio extraordinário aos valores das rendas e o alargamento do Porta 65 são reforços que, acrescentados à proteção temporária aos inquilinos com as rendas mais antigas, aliviam a situação atual.
2º Grupo – o das medidas que merecem ponderação
Estão aqui as propostas de disponibilização de imóveis do Estado e a mobilização dos solos públicos, da obrigatoriedade de os bancos disponibilizarem uma alternativa de crédito a taxa fixa e do modelo de pagamento de rendas, pelo Estado, ao senhorio.
Quanto às primeiras, o Governo sabe que nem daqui por uma década as direções-gerais do Ministério das Finanças terão o levantamento feito. O país tem um problema com o seu património que nunca ninguém soube ou quis resolver. É por isso que se deve ponderar muito bem o seu alcance e previsível sucesso.
A obrigatoriedade dos bancos terem uma taxa fixa pode ficar só num pequeno cartaz publicitário à entrada de cada agência. Todos sabemos que a concessão de crédito se afirma numa realidade única, individual, que o Estado não pode acompanhar nem fiscalizar.
O modelo de pagamento, pelo Estado, de uma renda ao senhorio pode ser tudo ou nada, dependendo da matriz que seguir a avaliação das candidaturas, a verificação das situações em causa, o papel da administração central e das autarquias, a realidade temporária de cada família. Nem nos melhores tempos do FFH teria havido condições técnicas para concretizar um programa com esta ambição…
3º Grupo – o das coisas que não interessam para o tema e devem ser esquecidas
O arrendamento obrigatório de casas devolutas – conhecendo os portugueses, é um tiro na nuca do Governo. Retire-se e esqueça-se.
A implicação no Alojamento Local, como está prevista, é terrível e levará a um aumento dos preços do alojamento turístico, à redução da oferta e, a prazo, ao mercado ilegal de alojamento temporário.
A garantia da renda justa em novos contratos só é possível pela iniciativa pública de construção e através de sorteio. As atualizações que a lei consagra para os contratos vigentes deve manter-se. A não ser assim, reduziremos, de novo, o mercado de arrendamento em Portugal.
E, por fim, os vistos Gold. Não tem qualquer importância para o universo de que falamos. Estamos em presença de construção de luxo. Importa não eliminar um programa que pode continuar a ser importante para o país se alterarmos os critérios atuais, o destinarmos a territórios deprimidos, se orientarmos os Vistos para empresários da indústria e da tecnologia com investimento reprodutivo de mais de 20 milhões de euros.
Como todos os grandes programas públicos, o que foi apresentado pelo Governo para a Habitação não deixou ninguém indiferente. Eu sei que há uma técnica que é fazer colocar umas lebres que desviam a atenção para, depois, se aprovar o que interessa mais. Só que, neste caso, as lebres pareceram desvario ideológico. Não interessa nada discutir constitucionalidades, interessa fazer as coisas acreditando que são bem feitas.
Depois do mês de discussão que teremos pela frente, o Governo volta a ter a palavra. E nessa altura tem de decidir se vai andar o resto da legislatura a medir o insucesso ou a estimar o sucesso. Não seria bom que deitasse fora o menino com a água do banho. Eu sei que Costa e Marina gostarão de medir o sucesso das suas medidas e que são dos mais moderados dos moderados no PS. É por isso que o radicalismo que parece existir desaparecerá já em março.
Ascenso Simões