Gosta de poesia?
Devo ter feito um ar idiota porque a mão direita puxa de uma pasta de elástico, guardada num saco de um supermercado qualquer...
Não ouvi bem à primeira e olhei meio de soslaio e desconfiado para o vulto escuro que se acoitava, como eu, debaixo da pala plástica que protegia a montra da Sá da Costa.
Gosta de poesia? – repetiu.
“Um tipo de abordagem original”, pensei. A pergunta parecia-me deslocada no frio da manhã, e, apesar de feita à porta de uma livraria, devo ter mostrado um ar surpreendido porque, rápida e suavemente, ouvi de uma voz quebrada de força, uma explicação:
Estou desempregada!
Devo ter feito um ar idiota porque a mão direita puxa de uma pasta de elástico, guardada num saco de um supermercado qualquer, abre-a lenta e respeitosamente – como se guardasse algo de muito querido – e estende-me uma folha fotocopiada.
Veja se gosta! Por favor, leia.
Era uma súplica. Tentei articular qualquer coisa como “obrigado, mas estou com pressa” ou “não, não gosto de poesia”, mas, tudo o que eu pudesse dar como escusa, me parecia um insulto. Olhei melhor a figura meia ensopada pela chuva de molha tolos que continuava a cair brandamente. No meio de um chapéu de mulher, com as abas muito largas e que cobriam aquela figura até aos ombros, estava um rosto pálido ainda jovem. Olhos muito pretos e brilhantes, quase febris, sem olheiras, um nariz fino e elegante, uma face branca e sem pintura e, sem sorriso. Toda de preto como se estivesse enlutada e uma compostura geral de sofrimento.
Quase envergonhado peguei na folha que me estendia e li:
Descreve-me o silêncio…
Não questiones o mar
Despe-o ao invés…
Deixa tudo, mas mesmo tudo.
Mergulha de vez na eloquência
Da nudez, rasga a palavra, recorta-a
Até que dela só reste picadinho…
E só aí talvez de ti digam que
Finalmente és uma pessoa banal…
Ou então nem assim porque todos
De ti já sabem que dormes e
Acordas cada dia com a tua loucura
E tens por amante a poesia…
Sabe, vendo-lhe esses versos! Não quero pedir! Ainda quero viver de forma digna! Se gostou, compre-mos, por favor.
Não me atrevi a perguntar “os versos, foi você que os escreveu?”. Peguei em 5 euros e estendi-lhos, cheio de vergonha por não saber o que dizer e sentir que há coisas que nunca se podem comprar. Serei o fiel depositário daquele naco de vida.
Então, puxa de uma esferográfica, apoia a fotocópia no vidro da montra repleta de best sellers de escritores de nomeada e, com a dignidade que as dificuldades da vida ainda lhe deixaram, escreveu o nome e colocou a data.
Que tenha um bom dia e muito obrigado! agradeceu.
Pareceu-me ver um sorriso no rosto, mas, se calhar, era um esgar de tristeza, por ter vendido um pedaço da sua alma.