Festas do quente

Tudo se aceitaria, com bons modos, se não fosse o exagero, e se o fundamental das populações estivesse assegurado. Mas não, afiançam-me até que alguns desses municípios que põem a correr rios de dinheiro para os bolsos dos artistas da rádio e da TV não têm todo o território coberto com saneamento básico e água canalizada. E fazem-no em consciência, sem que ela lhes pese, porque sabem que andam a construir sonhos. Pasmo!

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  • 12:20 | Segunda-feira, 29 de Julho de 2024
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Falo do país e da região, do litoral e da raia, do interior e da praia. Com o verão, vem o calor e chegam as festas. Não há cidade, vila ou aldeia que não se enfeite para celebrar os seus santos padroeiros, trajando os melhores fatos domingueiros, vestidos para serem vistos e apreciados.

Saem o pálio e os andores em procissões cansadas, as opas lustrosas, limpas e bem vincadas, das janelas abertas mãos de fé atiram flores da devoção, as colchas de linho, bordadas por dedos calejados, pendem das varandas, cobrem-se os chãos inclinados de verdura e de pétalas dos jardins, renasce a esperança na cura das doenças e a certeza na paz dos mortos, rola a quermesse com produtos da terra e do esforço familiar, os fios ligam um e outro lado das ruas com flores e triângulos em papel, há borracheiras de vinho com grau, ressacas azedas e doridas.

As doceiras e as mulheres que vendem tremoços e azeitonas negras, sentam-se escanchadas, sob a copa de árvores centenárias, passa o cego da concertina, o coxo que esmola, a cigana que lê a sina, acertando no futuro. O tinto e o branco, tanto faz, corre aos quartilhos pelos balcões de tábuas corridas e pregadas. Vêm os familiares matar saudades e rever os que ficaram, presos ao que é seu e aos seus, filhas e filhos de memórias.

Muito é o espalhafato e a sobreposição de datas, que parecem competir numa rivalidade sadia, esmerando-se cada qual em desenhar o programa mais preenchido. E há aqueloutras para assinalar datas pagãs, que atraem forasteiros. Os arcos da iluminação, os carros eléctricos, o carrossel e os cavalinhos para a canalha que tropeça nos degraus da pista. As mostras, os pavilhões e as exposições. Loiças e artesanato de fiar, o barro negro de Molelos, os dedos talentosos de Rosa Ramalho e de Júlia, a neta, em esculturas perfeitas, os bonequinhos músicos de Estremoz, albardas e cangas, freios e rédeas. Provas de ciclismo e gincanas, que deixam a sola dos pneus pregada ao alcatrão. Os cantores, as bandas e os concertos, as bailarinas poucos vestidas, que assanham sentidos sonolentos, em declínio. Os artistas nacionais andam numa bolanda, encontrando nestes meses meios de subsistência para o resto do ano, que é naturalmente fraco para os cantores de variedades. Consagrados ou emergentes, de qualidade ou maus, de voz afinada ou de cana rachada, fazem-se à estrada, e não têm voz a medir, se querem estar em todo o lado, facturando, facturando. E o povo acorre em massa para ver os seus ídolos de perto. Os maiores fãs sentam-se no chão poeirento ou empedrado, muito antes do espectáculo começar, aí abancam, comem e bebem, e fumam, querem tocar-lhes na mão, vê-los a acenar, notar-lhes as rugas, a pele seca e engelhada que a maquilhagem benfazeja encobre, ocultando rostos autênticos. E há as terras mais atrevidas que, não tendo na sua geografia praça de touros, se aventura a garraiadas, com as mansas vacas toiras a sair das furgonetas de transporte de gado, adaptadas a curros improvisados, saltando para o terreiro empoeirado, onde serão pegadas pelos cornos pelos mais bravos, levantando aplausos do público, sentado e esperneando sobre os taipais que servem de vedação.


Pode não haver para mais nada, mas para uma cantoria, para uns tintos ou umas bejecas, para umas farturas e um churros não pode faltar dinheiro, vai-se aos fundilhos das calças, ao mealheiro, se for preciso.

Não há moça que de chinela no pé não se deixe arrastar para uma modinha que chega do palco ou do coreto mais tradicional, nem varão que topando par que se lhe iguale em altura e braço vire costas a um bom desafio. De sangue na guelra e o corpo folgado, uns e outros não resistem ao arrebatamento que os convoca para a animação.

O tuga é festeiro, todos o sabemos, pela-se por um arraial, empina o pescoço para ver o foguetório, delicia-se com o fogo de artifício, festa sem ele não é festa, o povo exige e ele cai em lágrimas, ainda que os campos andem secos e o incêndio seja mais fácil.

Porque, há muitas décadas, quiçá centúrias, corre por aí que o povo do que gosta é de festa, a todo este efémero se juntam as autarquias, numa irmandade solidária e voluntária, convictas de que neste negócio todos saem a ganhar. Não há acontecimento de verão que se preze que possa prescindir da sua colaboração. Algumas, com outra dimensão e escala, acobertam-se até à sombra de empresas criadas com tal único fim, esgotando-se no preencher de agenda volumosa, não fugindo, porém, à desgraça de somarem prejuízos da ordem das centenas de milhares de euros, numa teima inútil de contrariar o que o passado dá como certo.

Não viria mal o mundo, e todo ele fosse esse, se os festins de envergadura não fossem um sorvedouro obsceno de dinheiros públicos, uma despesa exagerada para o retorno que trazem. E é aqui que bate o ponto central do meu escrito.

É certo que a economia local mexe e o comércio de rua, fugindo por instantes aos dias em que nenhum cliente se acerca do balcão ou, bisbilhotando e remexendo, só vê e não compra, agradece o ganho que vem com os forasteiros. Mas incomodo-me com o que me dizem ser gasto em concelhos de riqueza mediana, dias e dias de baile e cantorias, com espectáculos de qualidade questionável, feirando, feirando, sem parar.

Justificam os responsáveis que as verbas não são despesa, mas investimento, e num exagero de loucos, classificam aquelas invencionices de cultura.

Tudo se aceitaria, com paciência, se no final da vertigem, as contas não apontassem prejuízos de milhares de euros, pagos com o dinheiro dos contribuintes.

Tudo se aceitaria, com bons modos, se não fosse o exagero, e se o fundamental das populações estivesse assegurado. Mas não, afiançam-me até que alguns desses municípios que põem a correr rios de dinheiro para os bolsos dos artistas da rádio e da TV não têm todo o território coberto com saneamento básico e água canalizada. E fazem-no em consciência, sem que ela lhes pese, porque sabem que andam a construir sonhos. Pasmo!

O povo aprecia empanturrar-se de festas e arrotar alegre, ao acordar. O povo tão exigente e reclamante em assuntos por vezes menores, compraz-se com festas, sente-se bem e realizado, quando a banda sai a tocar pelas ruas e vielas e a música lhe entra pelas janelas. Os festejos, enquanto duram, anestesiam-no, e quando eles se sucedem numa cadência regular e bem programada, que não o deixam afundar-se em mágoas e tristezas, viciam-no, deixam-no num torpor.

Qu’importam a água do chafariz, as fossas a céu aberto, o bedum que vem do esterco, o fiado no merceeiro, as botas de inverno que ficam por comprar?

Numa tristeza alegre ou numa alegria triste, como quem não quer saber o truque, está o borrego pronto para o exaltante momento sacrificial. “Ite, missa est”.

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Publicado em Opinião