Falta-nos juízo

Neste tempo em que os fariseus saem para a rua, ofertando galhardetes e pós de cheiro, afigura-se-me sensato desconstruir mitos assentes em meias-verdades.

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  • 12:35 | Segunda-feira, 07 de Abril de 2025
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No distante comenos, reduzida a vida a quimeras, tudo me parecia possível. Quando acreditava que com o dedo tocaria os céus e mudaria os anjos, todos os meus territórios eram de grandeza romântica e intensos. Ao meu modo, malucava. Depois, a aspereza dos tempos, tornou-os inóspitos e ermos.

Cresci, e, embora tenha entesouradas algumas utopias, fiz-me pragmático. Só se vinga, sendo-o. O pão está caro e o azeite também. Só se sobrevive num mundo a prazo com os olhos postos no que é possível, lutando pelo alcançável. O resto é teimosia. Cauteloso, fico-me pela minha consciência, um confessionário de segredos e de expectativas golpeadas a lances de punhal e adaga.

Vem o preâmbulo a propósito de, já causticado, não embarcar nesta procissão tola de promessas, uma rezadeira obscena a regatear preços na quermesse.


Nunca emprenharei com a oferta generosa, desconfiando sempre da bondade da espórtula, fugindo de gravidezes suicidas e nascituros aleijados.

Em consciência, afastando as bandeiras e a oratória orgasmática, preocupo-me com o discurso fácil, ligeiro, superficial. Não me verão de conúbio com fantasias, nem mancomunado com jogos erótico- financeiros, perfídias de sedução eleitoral. Longe deste leilão de engodos.

Para essa irmandade de labitas toscas já contribuí, naquele tempo das auroras boreais. Não desdenho da cumplicidade de outrora. Porém, sim, porém, hoje e agora, aflige-me a despreocupação, o esquecimento, a ilusão.

A nossa brandura permite que de tudo se fale, sem consequências, tudo se alvitre, sem escrutínio, tudo se prometa, sem garantias. Somos assim. Crentes e mansos. Silenciosamente, uns revoltados inconsequentes.

À força da recorrência destrambelhada das suas ousadias, os decisores deste país tornaram-se inimputáveis, irresponsáveis. Uma farsa.

Neste tempo em que os fariseus saem para a rua, ofertando galhardetes e pós de cheiro, afigura-se-me sensato desconstruir mitos assentes em meias-verdades.

Mais do que o betão da casa do Luís e da moradia de luxo do Filipe – excessos de novo-riquismo, excrescências que caem mal num país de pobres e remediados, o novo adubo do folclore eleitoral -, mais do que a quota familiar do Pedro e as verbas europeias para a empresa familiar do Nuno – amendoins no batatal, que é Portugal -, incomoda-me que o país não cresça, não capte investimento estrangeiro, a economia não crie riqueza, as empresas não sejam competitivas, os talentos fujam, a emigração continue, os impostos sejam altos, a burocracia empecilhe e atrase, a corrupção seja doença crónica, os empresários não acompanhem os padrões europeus, a saúde não melhore, se abjurem as PPP’s, se diabolize a economia de mercado, a segurança já tenha conhecido melhores dias, a justiça esteja de rastos, médicos de família para todos seja uma miragem e questão de debate, haja Estado a mais, pouca racionalidade e eficácia na gestão dos recursos públicos, a sociedade civil seja definhada e acrítica, abstracções e fantasias sejam razões de solfejo, a cultura tenha tratamento de segunda categoria, a qualidade não vingue, os idosos sejam um estorvo, o básico tenha destaque, o vulgar ganhe andamento e vantagem.

Repugna-me que continuemos a exuberar nas liberdades, direitos e garantias, escrupulosos na sua estrénua defesa, de finezas com as conquistas da revolução, mas, para gáudio de uns tantos, a seguir o préstito do faz-de-conta e do vale-tudo, a alinhar com o facilitismo, a rejeitar o critério, a exigência, a excelência, como vias para o sucesso, a recusar a cultura do rigor, a tripudiar a ética na “res publica”, a aljofrar de pecados tudo o que convoque seriedade e decência, a tratar a política como palco e quitanda de chatins, a responsar os aguazis da civilização ocidental.

Uma certeza eu tenho: se insistirmos neste trilho, o conforto vai afunilar, o nosso futuro vai estreitar-se. Não há como fazer semeadura de ilusões. Este modelo não é sustentável. Há pouco tecido para muito lençol. Perante as dificuldades, tendemos a adiar o problema para as calendas, talvez a sorte o resolva. Gastamos energias na conciliação, na harmonia dos contrários, menorizando a solução, contornando a decisão. Não haverá segunda oportunidade para quem não soube, ou não quis, aprender. O músculo e o nervo, por enquanto prudentemente à espreita, no postigo da democracia valetudinária, na espera de um fósforo incendiário, entrarão vitoriosos na Jerusalém pagã, brandindo sabres, engatilhando pistolas, lançando foguetes.

Um dia. Que não seja no meu tempo, nem no dos meus. Mas entrarão, de mansinho, se persistirmos no festim dos azougados e não ganharmos juízo.

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Publicado em Opinião