A justa luta de resistência do povo ucraniano à invasão do seu país por Putin, o autocrata que reprime brutalmente a oposição democrática e de esquerda no seu país e promove a extrema-direita na Europa e no Mundo, não pode servir de pretexto para a expansão de uma força agressiva como é a NATO, com um triste passado de guerras ofensivas (Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Síria), de apoio a ditadores (como Salazar), e de golpes contra governos democráticos, como o “Golpe dos Coronéis”, na Grécia,em 1967, e de atentados bombistas de falsa bandeira, que só em Itália assassinaram 491 pessoas e feriram 1181, entre 1969 e 1987, segundo a comissão de investigação do senado italiano à Rede Gládio.
Estes atentados terroristas em vários países europeus, pelos exércitos secretos “Stay Behind” da NATO, ligados à extrema-direita, atribuídos a fictícias organizações esquerdistas, levou o Parlamento Europeu a condenar a NATO e os EUA numa resolução, em 1990.
Foi a esta organização tenebrosa que decidiram aderir os governos da Suécia e da Finlândia, agitando o medo de uma possível invasão russa, na sequência da invasão da Ucrânia, pondo fim a décadas de neutralidade, e cedendo vergonhosamente às exigências para a retirada do veto a estas adesões por parte da Turquia (um membro da NATO que tem massacrado o povo curdo: dezenas de milhares de mortos, mais de mil casos de tortura, várias centenas de desaparecidos e executados, mais de 2 mil aldeias evacuadas e destruídas), aceitando extraditar os refugiados e exilados curdos e turcos que o criminoso Erdogan considera terroristas (tal como Salazar considerava terroristas os movimentos de libertação das ex-colónias). E, no entanto, foram as milícias curdas que ajudaram a derrotar o DAESH, ao mesmo tempo que constroem, no Norte da Síria, em Rojava, um auto-governo com um confederalismo democrático, igualdade de género e justa distribuição de rendimentos.
A neutralidade defendida até agora pela maioria das populações da Suécia e da Finlândia, que parece ter recuado nesta sua manifestação de vontade devido à estratégia imperialista de Putin, é o posicionamento mais seguro para os povos e os países (incluindo Portugal) viverem em Paz e em coexistência pacífica.
A invasão da Ucrânia não desmente este princípio, uma vez que a história recente deste país, desde a queda da URSS, é uma sequência de interferências políticas e militares tanto da Rússia como da União Europeia e da NATO. José Milhazes, insuspeito de simpatias putinistas, no seu livro “Putin em busca da eternidade”, descreve como os sucessivos governos da Ucrânia se atolaram na corrupção e como o presidente Victor Ianukovitch, que “criou o Comité de Combate à Corrupção”, rapidamente desiludiu “os que nele viram um político pró-russo e anti-europeu”, ao resistir às pressões de Putin, aproximando-se da União Europeia: “O presidente ucraniano tentava não desagradar a ninguém, fazia pressão sobre os dois lados na esperança de conseguir dividendos maiores de alguma ou de ambas as partes. Chegou ao ponto de prometer, paralelamente à assinatura do Acordo de Associação com a UE, uma adesão à União Económica Euroasiática, mas quando José Manuel Durão Barroso considerou que isso era impossível, Kiev optou pelo lugar de observador na união que reunia Rússia, Biolorrússia e Cazaquistão.” Ou seja, Ianukovitch, tentou a neutralidade entre a Rússia e a UE, procurando assinar acordos económicos com ambos, mas foi a UE que impediu essa equidistância, deixando o presidente ucraniano fragilizado e à mercê das pressões russas. Milhazes lembra-nos como “no dia 1 de Abril de 2010 Ianukovitch criticou as possibilidades de criação de uma união de Estados da Ucrânia, Rússia e Bielorrússia (…)”, e “no dia seguinte, assinou um decreto que dissolveu a comissão governamental para preparar a Ucrânia para o ingresso na NATO e o centro nacional para questões da integração euro-atlântica, criados em 2006 pelo seu antecessor”. Foi esta tentativa de neutralidade e equidistância que esteve na génese do (golpe para uns, revolução para outros) “Euromaiden”, com manifesta interferência dos EUA e da UE.
Outra triste demonstração da hipocrisia “ocidental” foi a traição do primeiro ministro de Espanha ao povo do Sahara Ocidental, ao entregar a tutela desta ex-colónia ao governo ditatorial de Marrocos (seria o mesmo – imaginem! – que Portugal ter prolongado o abandono do povo de Timor Leste, deixando-o subjugado ao criminoso regime indonésio). Há poucos dias, uma carta aberta subscrita por 677 personalidades (de vários quadrantes políticos) e organizações da sociedade civil apelava ao governo português para reconhecer a “imprescindibilidade de realizar um referendo” (acordado, há 30 anos, no acordo de cessar fogo sob auspícios da ONU), no respeito pelo direito à autodeterminação do povo saharaui que luta há 47 anos pela liberdade e independência da última colónia de África.
Envergonha-nos a desumanidade, hipocrisia e duplicidade dos governos europeus no acolhimento de refugiados. O que torna cada vez mais pertinente a criação de um movimento universal para a abolição das fronteiras, à semelhança do internacionalismo abolicionista que do século XVIII ao século XIX levou à proibição da escravatura e do tráfico de escravos, sendo certo que ainda hoje as Nações Unidas desenvolvem esforços para monitorizar as formas contemporâneas da escravatura (como a exploração “escravocrata” do trabalho de imigrantes na agricultura, em Portugal).
Recordo que já em 1999, na fronteira da Alemanha com a Polónia e a República Checa, se juntaram mais de 1.400 activistas de vários países, num acampamento, em protesto contra as leis anti-imigração alemãs e para reclamar a liberdade de movimentos de todas as pessoas, sob o lema “Derrubando as Fronteiras”. É por aí: “Ninguém é ilegal! Cidadania global!”
Ebru Timtik, advogada e curda, foi condenada a mais de 13 anos de prisão. Morreu em Agosto de 2020, ao fim de 238 dias em greve de fome por um julgamento justo, negado a 18 advogados acusados de terrorismo por defenderem os direitos humanos dos curdos, apesar dos apelos de 33 ordens de advogados (incluindo a portuguesa). Foi a quarta prisioneira turca a morrer em greve de fome, em 2020, após a morte de dois músicos da banda Grup Yorum, que exigiam a libertação de sete membros do grupo; e a morte de Mustafa Koçak, que pedia um “julgamento justo”. “Mataram a justiça e a consciência”, disse o presidente da Ordem dos Advogados de Ancara.
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