“Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue [1].”
(Mia Couto, In Terra Sonâmbula)
Gosto de livros e tenho orgulho em alguns exemplares que tenho autografados. Uma das minhas “preciosidades” é o romance “Terra Sonâmbula” do escritor moçambicano Mia Couto com quem troquei breves e agradáveis palavras na ACERT, em 2004. Foi uma alegria! Um dia feliz!
“Muidinga e Tuahir pararam frente a um autocarro queimado. Discutem, discordando-se. O jovem lança o saco no chão, acordando poeira. O velho ralha:
– Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo.
– Mas aqui? Num machimbombo[2] todo incendiado?
– Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.”
Machimbombos, já colocados na sucata, estão agora a ser adaptados e transformados em salas de aula, de modo a suprir a destruição de mais de 1000 escolas nos últimos dois anos. Os lugares dos passageiros foram retirados e substituídos por carteiras escolares, a carcaça foi pintada, no lugar do motorista há um quadro e a secretária do professor.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) solicitou o reforço do apoio para mais de 700 000 pessoas afetadas pelo ciclone no norte de Moçambique.
Os efeitos do ciclone estão a agravar as necessidades já existentes, uma vez que os serviços e recursos foram sobrecarregados pelas necessidades de 800 000 deslocados internos no norte de Moçambique devido à insegurança na província de Cabo Delgado.
O livro A Fome, de Martin Caparrós, começou quando o jornalista, ao falar com Aisha sobre a bola de farinha de painço que comia todos os dias, lhe perguntou se realmente comia essa bola de painço todos os dias e teve um choque cultural:
“- Bem, todos os dias em que posso.”
Nunca estive em África. Não conheço a realidade do continente, a não ser, à distância, pelos canais noticiosos. Pude perceber um pouco melhor o que significa “fome verdadeira” e “fome epidémica”, através do olhar humano e sensível de uma amiga que está a trabalhar e a viver em Moçambique. Como diz muitas vezes, é impossível esquecer aqueles olhares, dos meninos dos olhos grandes e brancos…
A vida humana não tem o mesmo valor nas distintas geografias. A invisibilidade da geografia da fome, no continente africano, pode agravar-se pelo mediatismo do conflito em solo europeu. A Rússia está a bloquear a exportação de cereais. As consequências serão globais e especialmente trágicas em África, pelas suas vulnerabilidades endémicas.
A perversa estratégia Russa de asfixiar economicamente a Ucrânia terá um impacto global e matará de fome as populações do terceiro mundo.
[1] Maningue: muito, demasiado
[2] Machimbombo: autocarro
(Fotos DR)