Desumanização

Voltando a René Robert, este homem morreu congelado, numa rua de Paris. Caiu desvanecido sem que alguém se interessasse por ele. Deixaram-no morrer. Foi notícia por ser famoso.

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  • 18:06 | Quarta-feira, 02 de Fevereiro de 2022
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Recordo-me de ficarmos chocados com a notícia da morte de alguém, quando esta nos entrava em casa através da “caixa mágica”, tratasse-se de uma figura pública ou de um cidadão comum. Com as guerras em direto, creio que a guerra do Iraque terá sido precursora, fomos “normalizando” a morte do outro, num qualquer território mais ou menos distante.

Após os atentados às Torres Gémeas o mundo mudou, percebemos que, há muitos exemplos disso mesmo, não estamos seguros e que a “guerra” e a morte também podem estar numa qualquer rua ou estação de metro de uma cidade europeia. Percebemos o quão vulneráveis somos enquanto nações, comunidades, pessoas.

Nos últimos dois anos, um inimigo invisível colocou a humanidade em sentido e afastou-nos uns dos outros, agudizou o medo e tornou mais visível a falta de solidariedade entre os povos ricos do Norte e os pobres do Sul. Veja-se a questão das vacinas e a sua distribuição que vinca a geografia da pobreza.


Nas últimas décadas, assistimos à intensificação da urbanização, da desumanização e da indiferença. A morte do famoso fotógrafo René Robert, de 84 anos, converteu-se num terrível símbolo da desumanização das grandes cidades. Os vizinhos não se conhecem, não se cumprimentam, não se apoiam, não empatizam, não estabelecem relações. Nas ruas ou nas catedrais do consumo, não é incomum sentirmo-nos sós no meio de uma multidão anónima, talvez movida por um objetivo comum, o consumo desenfreado em resposta ao apelo do marketing agressivo e da cultura do imediato, do instantâneo, traços da Modernidade Líquida (Zigmunt Bauman). A propósito de Bauman, sugiro a leitura do livro Confiança e Medo na Cidade. O sociólogo procura analisar alguns traços da vivência em comum, evidenciando o individualismo, como forma de marcar uma posição de desconfiança, de medo constante, das inseguranças da experiência humana e no ambiente de competição criado a partir da modernidade líquida direcionada ao consumo.

Voltando a René Robert, este homem morreu congelado, numa rua de Paris. Caiu desvanecido sem que alguém se interessasse por ele. Deixaram-no morrer. Foi notícia por ser famoso. As pessoas ficaram incrédulas perante tal indiferença de quem passou, não reparou, não olhou, não apoiou, não salvou, não humanizou uma artéria da cidade das luzes e, dizem, do amor. Ninguém parou e o ajudou por ser um velho mendigo? É fácil imaginar que para os transeuntes era mais uma de tantas pessoas que em Paris, e em tantas cidades dos países ocidentais, vivem na rua.

A morte do fotógrafo suíço, que retratou as grandes estrelas do flamengo contemporâneo, poderia não passar de uma mera estatística, “apenas” mais um dos 500 que morrem, anualmente, nas cidades francesas. Este seu caso é sui generis, diferente da maioria dos que morrem sós e desamparados, porque não se tratou de um sem teto. Era alguém que tinha uma trajetória profissional reconhecida e foram os seus amigos que tornaram públicas as circunstâncias da sua morte.   

Em Portugal, haverá cerca de 8200 pessoas em situação de sem-abrigo, segundo os resultados do inquérito de caracterização desta população, publicado no portal da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA).

Sabemos que grande parte das pessoas em condição de sem-abrigo sofre de doenças do foro mental.  A pandemia terá também um impacto na epidemiologia psiquiátrica e o número de pessoas com doença mental vai aumentar. Temos que intensificar o trabalho nesta área tão complexa e de difícil atuação. Todos podemos morrer sós, gelados, desamparados, ignorados. Muitos vivem sós, durante anos, gelados, desamparados e ignorados.

NOTA FINAL: foi uma pessoa sem-abrigo que pediu ajuda, às 6H00, Robert foi transportado para o hospital, onde morreu após uma grave hipotermia.

 

 

 

 

(Fotos DR)

 

 

 

 

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Publicado em Opinião