Marcelo Rebelo de Sousa é um dos políticos mais hábeis e mais conhecedores do país real que o nosso país tem na atualidade. Nada do que faz é linear, pouco do que diz é em vão. Estou à vontade para o afirmar, nunca o apoiei, nunca votei nele.
As suas formas de ser e estar criam, portanto, um problema enorme ao comum dos mortais e como uma grande parte dos comentadores são, também, mortais comuns, as análises que estes fazem são primárias e imediatistas.
É exatamente sobre a questão da descolonização que importa falar.
Em fevereiro de 2021, num artigo incitativo que escrevi no jornal Público, examinei uma parte das questões que se colocavam, ainda colocam, perante a nossa obrigação de se concretizar uma profunda descolonização mental. Nessa altura, analisei a urgência de um debate sobre o salazarismo e, de passagem, propus a “demolição” do Padrão dos Descobrimentos, esse mastodonte que teima em figurar, sem qualquer enquadramento histórico, junto ao Tejo.
A comoção nacional foi grave e longa, ainda hoje se faz sentir. Só que esse primeiro grande confronto com a comodidade das almas lusas, veio, lentamente, a dar frutos.
O Brasil caminha a passos largos para a construção de uma outra língua, os países africanos são atacados pela influência dos vizinhos e pela capacidade de cooperação de outras potências europeias, o inglês salta por cima do português fazendo transitar os falantes dos dialetos nativos para esta língua técnica universal.
Portugal não entendeu, como Inglaterra e a Irlanda compreenderam quanto ao idioma influenciado pelos EUA, que a língua portuguesa tinha de se adaptar com rapidez, tinha de se fazer mais brasileira e africana para ser mais universal. Valorizar a língua não é militar contra o Acordo Ortográfico, é ampliá-lo.
A questão das relações com as antigas colónias é difícil. E é mais difícil em Portugal porque a nossa sociedade é profundamente racista. Ora, como numa família, a construção de um caminho único não se faz sem se ter em conta o facto de ter havido erros e de esses erros carecerem de uma retratação.
Marcelo fala em “indemnizações”. E fala bem, porém tarde.
Em Inglaterra esse processo começou há muitas décadas com a criação da Commonwealth, em França esse processo acelerou com a presidência de Macron, olhando para o interesse profundo na afirmação de uma língua e especialmente de uma influência geopolítica. E não se pode dizer que estas nações não sejam elitistas e senhoras de si…
Na Bélgica, o processo (des)colonial tem décadas. Dizem que é porque há um problema de remorsos, uma vez que o Congo não foi uma colónia, sim uma propriedade. Mas a verdade é que os belgas estão a saber estar perante a realidade dos tempos de hoje. O mesmo acontece com os holandeses, aqueles que têm presentemente um Rei que eliminou todos os sinais de colonialismo que ainda existiam na pompa da monarquia dos Países Baixos.
Mesmo o Canadá, que foi e em certa medida ainda é, uma colónia, já indemnizou os povos nativos que ali se encontravam quando chegaram os europeus.
As reações às afirmações de Marcelo decorrem da falta de cultura e da opção pelo nacionalismo e pelo tribalismo que está em medrança por esse mundo fora. Esse crescimento decorre do facto de termos desistido de uma visão universalista, de uma integração de povos e nações com as suas realidades e especificidades. Mas esse processo de descerebralização em curso não devia atacar os grandes partidos democráticos e liberais.
Ora, é exatamente aqui que está o problema – perante um pequeno passo levanta-se o ruído e recua-se. A democracia tem medo da demagogia e do populismo e o que aí virá não será coisa boa de ver.
Ascenso Simões