Situo o período cavaquista como tendo sido o tempo em que se criou a primeira ideia, e os acontecimentos políticos, entre 2008 e 2011, vieram a dar consistência à narrativa que muitas vezes se ouve – o Partido Socialista seria o grande responsável pelas três chamadas do Fundo Monetário Internacional (FMI) para fosse possível resolver as falências do Estado.
Não será fácil contrariar o que se consolidou. As redes sociais acabaram por certificar uma história falsa.
O FMI entrou em Portugal, pela primeira vez, em 1977. O governo de Mário Soares, que resultou das primeiras eleições legislativas livres, realizadas no primeiro semestre de 1976, encontrou o país numa situação dificílima. Não havia divisas para pagar as importações, as Finanças não dispunham de recursos para pagar, sequer, aos funcionários públicos.
Naqueles primeiros meses de governação, Soares encontrou, nos seus amigos de governos estrangeiros, o financiamento para ir tapando cada buraco que Medina Carreira lhe ia dando a conhecer.
A segunda metade de 1976 e a primeira de 1977 foram dramáticas para as Finanças, e o Banco de Portugal, ainda com competências que lhe permitiam driblar a situação, ia ajudando no que podia.
No segundo semestre de 1977, o governo não tem outra hipótese que não seja a de pedir a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI). Esta instituição era vista, pela esquerda à esquerda do PS, como um braço armado do poder imperialista americano.
O Partido Socialista, que governava, assumiu a realidade posterior de inúmeros sacrifícios, fez um novo governo, contranatura, com o CDS e, um ano depois, as direitas juntavam-se e regressavam ao leme do Estado.
O mesmo FMI voltou em 1983. O PS voltou a ser responsabilizado pela segunda chamada dos “imperialistas americanos” da finança. Mário Soares, que liderava um novo governo de salvação nacional, a que foi dado o nome de Bloco Central, entregava a Hernâni Lopes todos os poderes para salvar as finanças do país. E salvou!
Mas se não foi o PS, de novo, o autor da bancarrota, quem foi?
Entre as duas eleições legislativas de 1979 e 1980, Sá Carneiro fez um governo de campanha. Cavaco Silva seria ministro das finanças e assumiria duas vertentes – desorçamentação e despesa sem critério. Foi um ano de gasto público excecional, em que não foi possível contabilizar o dispêndio feito com o eleitoralismo levado ao extremo.
Sá Carneiro assumia isso mesmo. Precisava de ter um governo de quatro anos, um presidente e uma maioria parlamentar para rever a constituição, reverter as nacionalizações e a reforma agrária. Carecia de tempo e estabilidade.
Porém, a morte de Sá Carneiro, a nomeação de Francisco Balsemão como primeiro-ministro, a difícil tarefa de manter agregada a Aliança Democrática (AD) e contida a investida do presidente Eanes, criaram graves problemas de governação.
Aquele início da década de 1980 implicava também com os mercados tradicionais portugueses, Espanha estava a iniciar um processo de transformação que se transpunha para o nosso país.
Em 1982, Portugal vivia uma situação aflitiva sob o ponto de vista económico e social e não tinha uma governação capaz.
A AD ainda tentaria uma solução alternativa para a liderança do governo com Victor Crespo, mas era já tarde, o PSD vivia, igualmente, um grave problema interno.
Mota Pinto, agora líder do PSD, aceita, depois de eleições antecipadas em 1983, a proposta de Mário Soares – nasce o Bloco Central. À primeira vista seria uma solução governativa impensável, mas Pinto havia sido ministro de Soares e os dois poderiam vir a definir o jogo seguinte.
Temos as duas primeiras bancarrotas bem definidas e fica claro quem foram os responsáveis – o desvio gonçalvista da revolução e o governo da AD dos primeiros anos da década de 1980.
A terceira intervenção externa, a partir de 2011, já teve uma outra composição. Também lá estava o ex-imperialista FMI, mas a ele juntaram duas entidades de natureza política decorrentes dos tratados da União Europeia.
Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, dá sinais antagónicos aos Estados Membros – endividem-se para contrariarem a recessão – não façam dívidas porque assim entram em incumprimento. Portugal investe, com erros nesse investimento que hoje são reconhecidos, e endivida-se. Vai muito além da prudência exigida.
Sócrates foi um grande primeiro-ministro no seu inicial governo. A saída de Costa para a Câmara de Lisboa, a progressiva incapacidade do seu núcleo duro para ler a realidade, levou a que, em 2011, tudo se tenha precipitado. Faltou a Sócrates, naquele momento, o que sempre havia tido na sua vida política, visão, largueza de ombros e capacidade para voltar a liderar.
Claro está, todo o processo judicial em que Sócrates veio a estar implicado concedeu justificação para uma outra narrativa. Será difícil fazer acreditar a história verdadeira que aqui se conta. A governação de Sócrates entre 2005 e 2009, a que pertenci, foi um grande tempo para o país; os processos judiciais, que sempre me deixaram muitas dúvidas por revestirem justicialismo popular, seguem nos tribunais; as questões morais devem ser avaliadas por cada português. Para mim, com um conceito de amizade que só os transmontanos conhecem, Sócrates continua amigo. Estarei assim limitado para o futuro no exercício de novas funções governativas e seguindo os critérios de Marques Mendes – sou um socialista do aparelho e socrático.
Olhemos agora para a situação política e económica de hoje. Portugal viu a troika determinar as suas políticas entre 2011 e 2015. A partir de 2016 foi vencida a política austeritária e iniciado um processo de reposição de rendimentos. A economia cresceu, os juros desceram, as exportações subiram, Portugal passou a financiar-se noutros mercados e a qualidade da sua dívida melhorou significativamente.
Nos dias de hoje, a inflação que se vive por decorrência da pandemia e da guerra, está a comer uma parte dos salários e pensões. Imagine-se o que seria se os portugueses não tivessem visto repor o seu nível de poder de compra nos últimos sete anos…
Compreende-se bem a posição de António Costa por estes dias. Portugal não pode entrar numa espiral em que aumentos de salários concedidos são aumentos de salários comidos por uma inflação galopante. Seguir por esse caminho, o de fazer artificialmente dinheiro para dar a sensação errada de reposição do poder de compra, seria o nosso desastre.
É por isso que não se entende a posição do maior parido da oposição. A sua leitura, assente em despesa e caridade, tornaria o país muito mais pobre. Rejeita-se tal caminho. Primeiro porque já temos experiências suficientes de contas públicas desnorteadas; segundo, porque os portugueses não podem ser uns coitad
os a depender de migalhas públicas e privadas. A dignidade não se vende por falta de gás russo.
Faz bem Costa em ser ainda mais prudente. Sempre otimista e sempre prudente. Talvez seja da idade, mas Costa está a ficar, a cada dia que passa, mais Presidente da República do que Primeiro Ministro.
(Foto DR)