Coronavírus veio expor as fragilidades de um sistema de saúde já claudicante e de uma sociedade degenerada

O novo coronavírus veio expor as fragilidades de um sistema de saúde já claudicante, ele próprio doente, e de uma sociedade degenerada.

Tópico(s) Artigo

  • 0:07 | Quarta-feira, 11 de Março de 2020
  • Ler em 5 minutos

Dizem que há alarmismo desnecessário, e eu respondo “oxalá assim fosse!”. É importante que todos percebam o que esta epidemia significa. Se não tivermos a capacidade de contenção necessária para travar o avanço do Covid-19 no nosso país, enfrentaremos uma verdadeira catástrofe. É precisamente nesta premissa que encontramos as primeiras falhas; prefiro não antecipar o que acontecerá se os esforços forem vãos.

Não é surpresa a insatisfatória resposta da linha Saúde 24, dadas as múltiplas polémicas prévias. Numa situação que se adivinha extrema, a insuficiência da linha Saúde 24 tem sido gritante: é preciso ligar dezenas de vezes para conseguir chegar ao contacto e, após consegui-lo, a resposta tarda por horas intermináveis. Diz a Ministra da Saúde que “estamos a ser traídos pelo nosso próprio sucesso”, chegando mesmo a desincentivar o contacto, sem, contudo, apresentar alternativas válidas. Em vez de repetidamente desencorajar o recurso desacautelado dos utentes aos serviços de saúde, que os colocaria no terreno para que a infecção deflagrasse no seio da população mais frágil, a Dra Marta Temido parece querer entregar os potenciais infetados à incerteza.

A Linha de Apoio ao Médico não se revela menos caricata: é quase inacreditável o relato de uma médica que tentou contactar a linha 44 vezes, sem sucesso. Mais uma vez, o contacto é apenas a promessa de uma exasperante espera pela validação do caso.


A definição de caso tem vindo a ser revista, mas a todos continua a parecer insuficiente; num momento em que já não existem fronteiras para o coronavírus, excluir a possibilidade de casos de Covid-19 por terem estado em países com números ainda baixos, como a Suécia, não deixa ninguém tranquilo. A mobilidade dos cidadãos nos dias de hoje é ilimitada, e não se pode fechar os olhos a este facto; pelo contrário, uma vigilância mais apertada, nomeadamente nos aeroportos, permitiria identificar precocemente muitos casos suspeitos. Se, limitado por um crivo apertado e critérios pouco maleáveis, um caso escapar à identificação, será um potencial rastilho para um barril de pólvora.

Os utentes estão desprotegidos, e assim estão também os profissionais de saúde. Na primeira linha, equipas de segurança e funcionários administrativos enfrentam diariamente a imprevisibilidade sem protecção efectiva, em relação a todos os doentes que surjam com sintomas respiratórios (sintomas estes extremamente frequentes nesta época do ano, e que não distinguem a infecção por coronavírus de outros agentes infecciosos), munidos apenas de um algoritmo de questões pouco abrangente. Depois, auxiliares da ação médica, enfermeiros e médicos, frente a frente com utentes potencialmente infetados, sem equipamentos de protecção individual suficientes para suprir as necessidades e a exigir um racionamento impossível, com o apoio de uma linha telefónica manifestamente ineficaz e sem locais dignos para isolamento de casos suspeitos.

A Dra Graça Freitas, Diretora Geral da Saúde, anunciou a possibilidade de ativação de 2000 camas de isolamento. Estarão disponíveis na cave ou no sótão de sua casa, admito: nos hospitais do SNS, não estão, certamente. As 2000 camas de internamento não estão livres, Dra Graça. Estão ocupadas pelos doentes que têm as doenças que agora parecem banais: doentes severamente debilitados pela sua patologia ou por tratamentos como medicamentos para tratar doenças oncológicas, e para quem o risco infeccioso é muito elevado; doentes com infecções como a tuberculose; e por doentes com microrganismos resistentes e que exigem isolamento para protecção de todos os outros doentes e profissionais de saúde. A prontidão com que estas camas foram disponibilizadas leva-me a questionar que destino se dará a estes doentes, para dar lugar aos doentes com Covid-19 que requeiram hospitalização.

A infecção por este coronavírus pode causar pneumonia e uma insuficiência respiratória grave, que exijam admissão nos Cuidados Intensivos e ventilação. E aqui se expõe outra grave lacuna deste frágil sistema: o ratio nº de camas de cuidados intensivos por cada 10000 habitantes é de 4.2 no nosso país. A média europeia é, espantemo-nos, 11.5 – e Portugal está na cauda. Os hospitais estão absolutamente lotados, e esta realidade não é recente; como acomodar uma situação de emergência no estado agonizante dos nossos serviços? E, tal como nos cuidados de saúde primários, onde estão os equipamentos de protecção que garantem a segurança dos profissionais de saúde e dos demais utentes? Haverá a real noção da gravidade deste défice?

O plano de contingência foi elaborado e publicado tardiamente; parece que cada passo já surge desactualizado nesta saga. A educação dos profissionais é essencial e tem extensamente descurada; esta (in)formação é voluntária e, no caso dos médicos, tem sido fomentada essencialmente pela Ordem dos Médicos.

Têm sido tomadas medidas reais para conter a epidemia, não podemos negá-lo. A persecução de contactos dos casos identificados tem sido incansável e bem sucedida. O encerramento de instituições públicas e o cancelamento de eventos disso são testemunho. Mas, negligenciando tantas outras questões fundamentais, será esta conduta satisfatória?

A insuficiência dos serviços de saúde é tão preocupante como a desinformação. Foram precisos dias a fio até a DGS emitir um primeiro vídeo explicativo, inteligível e acessível; a sua divulgação na televisão pública foi escandalosamente breve (não discuto que a publicidade é mais rentável…). A população está alarmada sem conhecer as razões. Mas está, acima de tudo, mal informada. As máscaras esgotaram num ápice antes mesmo de a infecção chegar a Portugal, mas os portugueses não parecem dispostos às medidas mais básicas, como lavar as mãos uma e outra e mais uma vez, tantas quantas forem necessárias. Preferem usar a mesma máscara o dia todo, mexer nela, e, assim, no rosto, com mãos conspurcadas, levando o vírus à mucosa oral e à conjuntiva. Os portugueses aceitam de bom grado a quarentena e a cessação das atividades letivas, e transformam essa adversidade em vantagem própria, aproveitando para ver as últimas colecções no shopping ou viajar até ao Algarve. Os portugueses exigem que o médico que os atende numa consulta programada use máscara, não obstante a recomendação em contrário, esgotando desnecessariamente equipamentos individuais de protecção por puro capricho, insultuosamente sugerindo uma negligência por parte do médico que os atende.

Se o Covid-19 alastrar, vai provocar muitas mortes. A Itália, no coração da Velha Europa, vê doentes a sucumbir impiedosamente – só hoje, foram 166. Não é para mim, jovem adulta e saudável, que o coronavírus representa um risco enorme; é para os doentes com quem eu contacto diariamente, muitos deles com sistemas imunitários debilitados; é para os meus familiares e amigos com outras idades e comorbilidades. A taxa de mortalidade estimada é de 3.4%, mas este valor ascende a 14.8% acima dos 80 anos; as comorbilidades como a doença cardiovascular e a diabetes podem fazer ascender este risco acima de 10%; nos casos considerados graves, a mortalidade é de 49%. Não obstante haver relatos de sucesso com alguns fármacos, “importados” de outras doenças como a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, não há ainda tratamento específico. O civismo, e não só a resposta institucional, é fundamental para conter a infecção.

Sublinho: o Covid-19 pode vir a ser catastrófico no nosso país, para quem for infectado e para todos os cidadãos que sofrerão o impacto da epidemia neste sistema de saúde exausto. Façamos a nossa parte: lavar as mãos, muitas vezes; evitar tocar no rosto; usar as máscaras de protecção de forma criteriosa e proteger a boca com a parte interna do cotovelo ao tossir ou espirrar; evitar locais sobrepovoados e contactos próximos desnecessários; permanecer em casa tanto quanto possível. A informação relativa ao covid-19 é regularmente actualizada nos sites da Direção Geral de Saúde e da Organização Mundial de Saúde – e é precisamente nas fontes fidedignas que devemos confiar. E devemos também confiar que, quando o Covid-19 nos deixar, deixará também alguns ensinamentos, como outras epidemias prepararam alguns países para enfrentar de forma admirável o novo coronavírus.

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Opinião