Cavaco Silva é hoje o político mais longevo da nossa democracia. O que somos, o que fizemos, está marcado pela sua ação, pelas suas caraterísticas e pela sua visão de Portugal e do mundo. E seria iníquo considerar que Cavaco não deixou uma marca.
O governo de salvação nacional do Bloco Central veio resolver o problema. O PS fica com a culpa de ter sido o autor da bancarrota, coisa que Cavaco nunca veio negar.
Essa regência de Soares e Mota Pinto acelera e termina o processo de adesão à CEE. Cavaco revela-se contra essa aderência naquele tempo terminal, mostra a sua insatisfação pela entrada no clube dos ricos europeus. Nunca esclareceu, mesmo nas suas memórias, as razões verdadeiras dessa posição.
Mas foi Cavaco o beneficiário líquido da integração europeia. Os seus dez anos de governo trouxeram-nos uma espécie de “homem novo” assente na putrefação política de que são exemplares muitos dos agentes que fizeram o BPP. Não basta uma afirmação pessoal da nossa honorabilidade quando as provas sumarentas nos indicam informação privilegiada, ilegal portanto, na alienação de ações.
Recordamos bem, nós os resistentes do cavaquismo, o que foi aquela década de camisas brancas, calças bordeaux, sapatos vela. Recordamos os jeeps de alta gama em uso pelos novos agricultores, os valores comissionistas dos dinheiros do PEDIP. Um país de sucesso que vivia em sobressalto às sextas-feiras com as manchetes do jornal Independente.
O que nos leva a revisitar este tempo? Tão só o texto de Aníbal Cavaco Silva, publicado ontem no Observador, e a que Miguel Carrapatoso concedeu o epíteto de “pleno de ironia”. Lamentamos, Miguel, de Cavaco Silva tal nunca poderia advir.
Aníbal Cavaco Silva vem a terreiro confrontar a sua obra de chefe do Governo com a de António Costa. Se tivesse amigos, o Professor teria sido recomendado a não o fazer. Por duas razões: 1. anacronismo histórico; 2. vitupér
Não pode, nos tempos de hoje, recomendar-se ao protagonista que se revista do distanciamento para uma análise cuidada da sua ação. Na falta de um cronista, Fernão Lopes acharia Cavaco uma seca, é o próprio a reclamar do que os portugueses terão esquecido, uma fantasmagoria que Cervantes não sugeriria por ausência de um Sancho Pança. Ou seja, transferir para os portugueses uma lista coisas feitas sem enquadramento, sem as suas razões de ser e as suas decorrências, não é mais do que uma mera lista sem valor facial, uma diarreia de fragmentos a que ninguém dará valia.
Cavaco Silva começa pelos contextos em que chegou ao poder em 1985 para se espraiar pelas suas duas maiorias absolutas. Compara a tontaria do PRD e do PS no derrube do seu governo minoritário, em 1987, com uma semelhante do BE e do PCP, em 2021. Sim, nesse aspeto tem razão, uns tontos nos dois tempos. Duas maiorias absolutas que criaram uma outra conjuntura.
Mas há nessa comparação um segredo mal guardado – Cavaco vive com um problema existencial – que Costa o ultrapasse no seu tempo de “premier”. É uma visão mesquinha, mas está escrita, de forma bem garrida, em cada caracter da primeira parte do seu texto.
Na segunda parte do seu grafado, Cavaco fala daquilo que é uma barrigada de riso e que nunca havia sido dito – a sua propensão, atenção e mobilização para o diálogo. O Professor sempre foi conhecido pela sua capacidade de dialogar, pela cedência e pelo compromisso. Ouve-se, no horizonte, o riso de dez milhões de almas lusas…
Fala-nos das revisões da Constituição de 1989 e de 1992. Os portugueses não se recordarão bem dos universos dessas revisões, mas Jorge Lacão ou José Magalhães poderão recordá-los – as nossas obrigações europeias. O gigante constitucional de nome Aníbal é, afinal, um pequeno pigmeu.
De propósito, o Professor lista depois um conjunto de leis que eleva a novo património civilizacional. Fala da abertura a privados da comunicação social e do não monopólio, pelo Estado, de um vasto conjunto de atividades económicas.
Pode Cavaco iludir os mais novos ou os mais desatentos, mas não conseguirá sustentar uma argumentação mínima que faça desmerecer a revisão constitucional de 1981/1982, aí sim, o tempo em que o país saiu do período revolucionário e entrou nas democracias liberais.
Cavaco, no texto, fala da liberalização da comunicação social. Daqui lhe respondemos – a comunicação social estatizada foi o maior aliado das suas maiorias absolutas, foi o tempo em que do universo restrito da orientação política do Governo se estendia uma linha de telefone analógica para os serviços da RTP no Lumiar e na 5 de outubro.
No seu pensamento, Cavaco Silva murmura-nos a Lei de Bases da Reforma Agrária que o seu governo aprovou. Não lhe negamos o fim do desvario gonçalvista, mas entregamos, sem outro destinatário, o derrube da nossa capacidade produtiva e a debilidade da nossa balança alimentar. Também nos fala da Lei de Bases da Saúde e aqui só poderemos lembra-lhe a palavra “ridículo” que esta proclamação contempla. Nunca o PPD/PSD subscreveu o Serviço Nacional de Saúde e, quando Cavaco saiu do governo, metade dos hospitais continuavam dependentes de protocolos com as Misericórdias e o acesso aos cuidados médicos, com exceção da saúde pré-natal que se deve a Leonor Beleza, eram ao nível do uso primitivo da cirurgia em dois terços do país.
Por último, uma reivindicação insuportável. Diz Cavaco que lamenta a situação atual de Portugal como democracia com falhas. Não fora a obrigação de civilidade que assumimos e a resposta seria dura. O chefe de Governo que nunca debateu com o líder da oposição, o líder do PSD que inventou, por si ou outra pessoa, um regime de acesso e circulação limitado os jornalistas no parlamento, essa pessoa só pode estar a folgar connosco.
Não sei o que seria uma governação de Cavaco em tempo de redes sociais. Estou certo de que não seria, porque nunca teria condições de existir para além de uma mera rodagem de um Citröen BX rumo à Figueira da Foz. Bem, será que Aníbal Cavaco Silva sabe o que são Redes Sociais?
(Fotos DR)