António Costa, o filho da Liberdade!
Há quem o ache colérico e quem o pronuncie afável e próximo; há quem o mostre gregário e quem o crisme de individualista; há quem o indique superficial e quem o consagre robusto; há quem nunca o tenha visto emocionado e quem o saiba capaz e fértil em sentimento; há quem o considere elitista e quem o relegue para um espaço de normalização; há quem o veja inconfiável e quem nunca tenha encontrado essa caraterística na sua pessoa.
António Costa é esta personalidade, tudo e o seu contrário porque ninguém pode ser uma coisa só depois de quatro dezenas de anos de vida pública e quando chega ao seu sexagésimo aniversário, que passa hoje.
Há quem o ache colérico e quem o pronuncie afável e próximo; há quem o mostre gregário e quem o crisme de individualista; há quem o indique superficial e quem o consagre robusto; há quem nunca o tenha visto emocionado e quem o saiba capaz e fértil em sentimento; há quem o considere elitista e quem o relegue para um espaço de normalização; há quem o veja inconfiável e quem nunca tenha encontrado essa caraterística na sua pessoa.
António Costa é esta personalidade, tudo e o seu contrário porque ninguém pode ser uma coisa só depois de quatro dezenas de anos de vida pública e quando chega ao seu sexagésimo aniversário, que passa hoje.
Costa é rebento da indocilidade e da luta comunista por implicação de seu pai, Orlando Costa, um dos mais relevantes escritores neorrealistas portugueses, como o eleva Maria Filomena Rodrigues. Com três prisões pela PIDE, cinco livros proibidos pelo salazarismo, Orlando Costa foi também um dos mais intrigantes e subversivos escritores a tratar o colonialismo, não na perspetiva panfletária, mas na inteligência com que elaborava sobre a segregação.
António não recebeu os genes da ficção e a propensão para a escrita literária, mas é bem visível uma outra marca paterna que o acompanhou sempre – a criatividade. A publicidade que Orlando Costa criou, a que chamava de “poesia por encomenda”, apresentou-se sempre excêntrica, marca que também António assume na sua propensão para a publicidade travestida pela política e a que chamamos propaganda.
Mas António é também filho da liberdade, agora de opinião e imprensa, que sua mãe, Maria Antónia Palla, sempre avocou. Na luta pela emancipação da mulher, na sua visão não exclusivista da emancipação dos povos, na forma de ver o mundo de cima, ou quando o fazia de baixo sem se deixar implicar pelo comum ou ordinário, Palla transportou para o filho a arte de não ter patrão, de não ser marcado de forma determinista pelos outros. Também deixou que António fosse o dono da bola, por vezes negacionista das regras, insubmisso mesmo que o medo se acerque dele em ocasiões dramáticas.
Foi este suporte de berço que fez a árvore que hoje conhecemos. Por isso eu posso dizer que Costa, a pessoa e o político, ganhou nos pais uma caraterística única – há sempre uma solução para os grandes problemas, em que deles poderemos sair sem um braço ou uma orelha, mas sairemos vivos. Muitos dos que dele não gostam chamam a esta habilidade – sobrevivência. Eu chamo-lhe resiliência, conceito cada vez mais usado e a cada dia mais relevante pela invenção da análise pós-freudiana na pena de Coimbra de Matos.
Não adivinho se terão nascido dos pais outras duas caraterísticas que o fazem – a astúcia e a paciência. À primeira eu chamaria astúcia de base triangular; à segunda eu chamaria paciência lógica. Triangular porque os mais pequenos problemas devem ter sempre três opiniões para a solução. Costa diz que segue orientações guterristas, mas eu não concordo. As três opiniões não são base de decisão, são legitimação da decisão, posteriores a esta. Quando Costa decide, o mais relevante é a intuição e é por isso que erra muitas vezes, mesmo que saiba corrigir o erro com sucesso e o resultado final seja amplamente vantajoso.
Muitos dos que com ele trabalharam discordam da minha apreciação de que há em Costa uma paciência lógica. Isto porque na sua ação corrente tudo é para ontem. São campos diferentes. A insaciabilidade perante as coisas do dia não nega o pé certo, o passo firme perante o objetivo de médio prazo, a habilidade tática não elimina a estratégia, mesmo que, e nisso cedo, todas sejam individuais e por vezes sacrificadoras dos princípios.
Em 2007, o padre Vitor Melícias disse-me que há uma não conformidade entre a forma de pensar de Costa e a sua forma de ser. Vim a verificar isso mesmo no dia em que fui confrontado com a sua decisão de ser candidato a presidente da Câmara de Lisboa. Costa havia já pensado/assumido ser candidato, mas, perante os seus secretários de Estado, revelava-se ter imensas dúvidas nesse passo. Alguns dos meus amigos consideram esta caraterística uma declinação infantil que, em boa verdade, todos os humanos vão revelando. Porém, para mim não se trata mais do que o resultado da paciência lógica em que tudo tem um tempo que não se deve revelar antecipadamente. A não cedência à reivindicação popular de remodelações governativas pode comprovar esta minha leitura.
Costa é o postremo político da tradição portuguesa. O que considero eu tradição portuguesa? A garantia do núcleo ancestral da família como última razão de vida. O seu longo casamento com Fernanda diz muito do que é Portugal, a vida, o mundo das implicações pessoais. A criação de ambos em duas pessoas extraordinárias, o Pedro e a Catarina, nega a inconstância que Costa parece conceder-nos. António poderia não vir (mas virá) a ficar na História como autor de grandes feitos, mas ficaria sempre como exemplo na construção de uma identidade familiar profundamente enraizada. E. nos tempos que correm, não é coisa pouca.
Há nele uma leitura religiosa da vida que o obriga à dedicação aos outros. Não uma ânsia de poder pelo poder como por vezes parece, mas a utilização do poder como ferramenta evangelizadora para a solidariedade. O tal primeiro texto ideológico que acima referi tinha como tema a universalidade e gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde, comprovando esta minha leitura.
Porém, nunca devem os portugueses acreditar quando ele fala em igualdade. O uso desta palavra em Costa não sai bem, porque ele segue o primado da liberdade sobre a igualdade, o espírito de aventura perante a determinação da norma. Mesmo tendo feito o inédito acordo com os partidos da esquerda folclórica e da esquerda esquelética, Costa não esqueceu, mesmo que nela não fale, a sua obrigação de valorizar o homem enquanto ser criador, o verdadeiro espírito do Vaticano II.
Os sessenta anos de Costa são divididos em décadas muito cavas entre si. A primeira a da criança de uma Lisboa como centro de tudo e o centro histórico como orifício da visão de mundo. Há colegas de infância que dizem que ele era bom a quase tudo sem ser excecional a coisa alguma. Quando eu lhes pergunto se não havia nada de relevante, todos indicam a liderança e o espírito de luta. A segunda é a afirmação inicial. Ele anda pelas guerras liceais, convive e forma-se pela lente de jornalistas reconhecidos, enfrenta as câmaras como se fosse já o estágio para os grandes públicos. Assume responsabilidades na Juventude Socialista e marca uma infindável lista de camaradas e depois amigos.
A terceira década é a construção de uma ideia política e de uma inacabável arte de conspirar. Na JS, onde não foi pera doce para Margarida Marques, na Faculdade de Direito onde criou laços que iam do espaço do PS até aos jovens católicos.
Esta terceira década é aquela em que ele se acha injustamente atacado. Mário Soares impedirá que ele seja secretário-geral da JS e esse episódio marcará, de forma decisiva, a sua ação política. Tal aversão soarista advinha do facto de Costa ter, termos, apoiado o ex-secretariado na eleição presidencial de Eanes, mas tenho para mim que, no tempo de hoje, ambos consideramos que Soares tinha razão na sua antevisão de país.
A quarta década é já a da política em grande. Deputado com preocupações na área da habitação e dos imigrantes, outro sinal decorrente da sua visão do Vaticano II, vem a ser candidato a presidente do município de Loures no mesmo turno em que eu fazia o mesmo caminho em Vila Real. Na mesma noite ganhámos pelos olhos da RTP e na mesma perdemos pela secura dos resultados.
A chegada à liderança da estrutura política mais relevante do PS, a federação da área urbana de Lisboa, teria um fim que se pode inculcar mais a Sampaio, na sua luta contra Guterres, do que a ele próprio. Mas estes dois factos, Loures e FAUL, marcaram Costa por algum tempo, enguiço que viria a resolver-se de forma não convencional com a sua eleição para alcaide de Lisboa e a sua nomeação como primeiro-ministro.
A quinta década é a do ministro político e do criador. A do nascimento da outra leitura sobre a política externa e sobre os desafios da Europa. Ministro dos Assuntos Parlamentares que sustenta o executivo minoritário de Guterres e finaliza a Expo 98, criador de uma nova visão para a Justiça, afirmou a sua autonomia de pensamento e de ação no dia em que se demitiu sem que alguém tivesse autoridade para o demitir. O caso Camarate é uma carta de alforria que sempre assume – a da independência do poder judicial. Volta ao Governo como ministro de Estado, pai do Simplex, reformador na Proteção Civil, prospetivo na Segurança. E é também neste decénio que entra na sua maior realização pessoal – ser presidente de câmara.
Todos sabemos que os presidentes de câmara têm, em Portugal, uma dimensão caudilhista. Mas com Costa não foi bem isso que aconteceu, foi uma certa reinvenção da visão de cidade ampla e criativa que nasceu com Sebastião José e que entre os dois (talvez só Duarte Pacheco e João Soares se tenham aproximado na obra infraestrutural) mais ninguém tenha afirmado enquanto política urbi et orbi.
O ponto de partida deste texto foi o que Costa poderá vir a ser neste seu caminho de sétima década em que entra. Europa? Presidência da República? Presidência da Gulbenkian? Que importa isso? Sabemos que na vida de António continuará Fernanda, o seu cais de chegada e partida, Pedro e Catarina, a história mais relevante que o fará perene.
A sexta década é a transição entre Lisboa centro e Lisboa país. Costa sabe que a governação atual, que segue o seu espírito e a sua liderança, não assume a exteriorização de todos os países que existem dentro do país. E é este um dos pecados da sua governação.
Mas de Lisboa construiu um posto avançado da Europa, um poiso de experiências que politólogos e cientistas políticos vão estudando. A “geringonça” é uma obra de arte, a afirmação nos corredores bruxelenses, sem deixar de ter pé no país, é um desassossego.
O ponto de partida deste texto foi o que Costa poderá vir a ser neste seu caminho de sétima década em que entra. Estamos perante a escassez de oportunidades para uma tão grande e incessante criatividade. Estamos limitados no uso a dar a este espécime único de Sapiens Sapiens que é diferente de todos os que conhecemos e que sempre nos surpreende e se supera.
Os amigos, aqueles que lhe aturam o mau feitio que só oferece aos que preza e não lhe cobrarem o que quer que seja, sabem que terão de exteriorizar essa sua amizade de forma unívoca. Afinal, como ele sempre diz, os amigos não se levam para o Governo. E também sabem que a liberdade de que é filho é diferente de todas as outras.
Parabéns, António!
(Foto DR)