Andam os cravos murchos!

Ninguém, sob pena de ser apostrofado com brindes chocarreiros, quererá faltar a este ritual possidónio. Manda o protocolo que assim seja. Até a Igreja, que não se devia meter em coisas pagãs, aprendendo com um passado longínquo que, às mãos de um Coruja, um Afonso, que também era Costa, a enxovalhou, cantará hossanas, engrossando o ruidoso caudal dos elogios.

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  • 15:52 | Segunda-feira, 22 de Abril de 2024
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O país engalana-se para celebrar os valores de Abril! Preparam-se festas de arromba, não há lugar ou lugarejo em que não haja festejos, uns mais sóbrios, outros mais vistosos, mas todos emplumados.

Esta semana vai marcar o expoente das comemorações. Descerram-se placas, inauguram-se monumentos, apresentam-se livros, fazem-se debates, cantam-se as velhinhas músicas de intervenção que, no formato dos vinis, saem do mofo dos baús. Por arrasto, vêm os discursos da nomenclatura do regime, que desfila com as suas lustrosas vestes. E a Assembleia da República acolhe a solene procissão que incorpora as mais altas entidades da Nação, que se fazem representar pelos dirigentes máximos, abotoados nos trajes a rigor.

Ninguém, sob pena de ser apostrofado com brindes chocarreiros, quererá faltar a este ritual possidónio. Manda o protocolo que assim seja. Até a Igreja, que não se devia meter em coisas pagãs, aprendendo com um passado longínquo que, às mãos de um Coruja, um Afonso, que também era Costa, a enxovalhou, cantará hossanas, engrossando o ruidoso caudal dos elogios.


De todas as ruas, vielas e becos virão loas a Abril e apologias do seu sentir. Os festejos estão abertos a todos, puros e impuros, os de sempre e os de ocasião, os vernáculos e os matizados, que no gordo caldo tudo se confunde. Porque a democracia, uma velha e sonolenta senhora, qual albergue espanhol, todos alberga e acolhe, sem distinções. E mesmo os misantropos, em suave contradição, andarão comunicativos e sociáveis.

Esta é a semana de todos os festins. As floristas esgotam o seu stock de cravos, igual pressão na procura só a sentem nos Finados, quando se evocam os mortos. E quem não salta não é bom democrata, dizem os mordomos da festa, que vai bonita e colorida, trocando os santos nos andores, seguindo um guião que é revolucionário.

Tem cãs o Abril do contentamento, que num só dia trouxe todo o futuro, dissolvido em tintas de ilusão. Aquele Abril milagreiro, em que, loucos pela liberdade e bêbados de alegria, do nada quisemos muito e todos confundimos tudo, virando Portugal do avesso. Estralejaram os foguetes no ar, os senhores derrubados fecharam-se em casa, carpindo mágoas e reclamando inocência, e os novos donos corroeram-se em contradições, promovendo, à socapa, sedições. Acabou a guerra e a censura. Levantaram-se os punhos fechados, sinal de uma força e de uma luta que não terminavam, prometendo prolongar-se. E depois vieram os excessos. O cerco ao congresso do CDS, no palácio de Cristal, o sequestro do Parlamento e o inconveniente “bardamerda para o fascista” do almirante Azevedo, o assalto, a norte, das sedes do Partido Comunista, os partidos e o MFA que, não o sendo, se portava como se o fosse, a indisciplina militar com a criação dos SUV’s, a mudança por um dia do governo em fuga para o Porto, o Conselho da Revolução, a tontice do Campo Pequeno, uma descolonização que nada teve de exemplar e que por ser apressada fez mártires escusados, o ELP e o MDLP com saudosismos serôdios e requentados, rios de memórias mortas.

E agora, na ressaca dos tempos posteriores que ofenderam Abril, lhe chuparam o sangue e desvirtuaram os seus princípios mais puros, nasceu um tardio populismo demagógico, já antevisto, vertido em vozes nacionalistas que deixam sempre a desconfiar, e que, se não houver tino nas elites de umbigo proeminente, podem deitar tudo a perder.

Livre de teias de aranha, separado dos gurus que tudo pretendem influenciar, vacinado contra os donos da verdade, encontrando virtudes e pecados em todo o lado, bem resolvido com a vida e a política, por mim, podia vir tudo de novo!

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Publicado em Opinião