Com as guerras emerge o pior e o melhor do ser humano. Há quase um ano que enfrentamos um vírus poderoso que abala a humanidade, bloqueia as nossas vidas e afasta-nos dos nossos entes mais queridos. São muitos os exemplos, de generosidade; solidariedade; resiliência e amor ao próximo, que nos devem captar a atenção e servir de motivação para não atirarmos a toalha ao chão e, dia-após-dia, nos empoderarmos.
Mas, não podemos deixar de constatar, apontar e criticar, construtivamente, os maus exemplos internacionais e nacionais, contribuindo para visibilizar os erros e trabalhar para que não se repitam.
Sucedem-se os casos condenáveis na gestão e distribuição dos equipamentos de proteção individual. Os Estados Unidos desviaram máscaras compradas pela polícia alemã, retiveram ventiladores destinados ao Brasil e impediram a exportação de máscaras para o Canadá. A França apreendeu máscaras de Espanha e Itália. A Turquia capturou centenas de ventiladores comprados pela Espanha à China. A especulação pornográfica do valor das máscaras e do álcool ocorreu logo no início da pandemia (“Especulação online perto de 1000% no álcool etílico”, In Rádio Renascença, 28 de março de 2020). O definhar de uns alimenta a ganância e a soberba de outros. O enriquecimento de uma elite restrita contrasta com o exponencial aumento das desigualdades sociais e do fosse entre ricos e pobres, estes a braços com a pandemia, a crise económica e social, a perda de emprego e de rendimentos.
Em novembro de 2020, em entrevista à revista Visão, António Damásio, reputado neurocientista que trabalha no estudo do cérebro e das emoções humanas, sobre a possibilidade de se vir a ter uma vacina eficaz no combate à covid-19, respondeu:
“Estamos a falar de produzir e de distribuir, não milhões, mas milhares de milhões de vacinas. E também vão existir os problemas de decisão: quem é que vai ter a vacina? Tratar-se-á de uma vacina apenas para os ricos? Claro que não… Quem paga? Quem recebe? E, dentro daqueles que vão ser vacinados, quais serão os prioritários? As pessoas de maior risco – os idosos, os que têm outras doenças, doenças pulmonares, doenças de coração, imunodeficiências várias… – devem ser as primeiras a ser vacinadas.
Mas, depois, quase ao mesmo tempo e muito rapidamente, vai ser necessário vacinar o resto da população, começando de cima para baixo, consoante a idade e a gravidade de doenças associadas. Não tenho quaisquer dúvidas – temos muitas razões para estar otimistas: a Ciência vai trazer as soluções. O problema colocar-se-á ao nível político.”
António Damásio acertou, a ciência trouxe as soluções, obtivemos uma vacina em tempo record e o problema tem vindo a colocar-se ao nível político. O plano de vacinação português já sofreu diversas alterações sinal da pouca consistência da estratégia nele plasmada e da errática definição dos grupos prioritários. [Leia o artigo “#IDADISMO: O PROCESSO DE VACINAÇÃO COVID-19”[1]]
Estou sempre na linha da frente na defesa do terceiro setor e de quem nele colabora, mas não me coíbo de apontar o dedo quando tal se justifica. Um dirigente de uma instituição social que é vacinado ou manda vacinar sem critério é alguém que terá estado, a determinada altura, na hora certa, no lugar errado. Quem dirige tem que dar o exemplo, mais ainda num contexto adverso como o que atravessamos.
Para baralhar ainda mais, está instalada a confusão quanto aos políticos que devem ou não ser considerados prioritários, há quem o seja e não queira a vacina e outros que, sem qualquer razão objetiva para serem listados, darão o braço à seringa sem qualquer hesitação. Não façamos da ansiada e imperativa vacina uma chicana política, por favor. Sejamos sensatos!
Termino com um exemplo de insensatez política, que não gostaria de ver replicado em Portugal. Em maio de 2019, a Fundação de Amancio Orteg – “o multimilionário tímido que saiu da pobreza para criar a Zara” (NIT) – ofereceu 310 milhões de euros aos hospitais para a luta contra o cancro. Todavia, Pablo Iglesias, líder do partido Unido Podemos, advertiu: “Uma democracia digna não aceita esmolas de multimilionários para dotar o seu sistema de saúde, faz com que paguem os impostos que lhes correspondem e respeitem os direitos dos seus trabalhadores.” Poderia dar outros exemplos de mecenato do empresário. Tenho mais dificuldades em identificar, garanto-lhe, caro leitor, que pesquisei, as obras e benfeitorias do senhor Pablo Iglesias.
Entretanto, no dia 20 de março de 2020, um avião da Inditex aterrou em Saragoça. O avião transportou máscaras e fatos de proteção, armazenados em paletes, nas quais, tanto em mandarim como em espanhol, poderia ler-se a seguinte frase:
“Ainda que os oceanos nos separem, une-nos a mesma lua.”
[1] https://envelhecer.pt/idadismo-o-processo-de-vacinacao-covid-19/