A trapalhada

O primeiro-ministro foi imprudente na gestão do caso da empresa familiar, que está longe de estar resolvido. Cada dia que passa, vem mais lenha para a fogueira, as dúvidas adensam-se, a intriga azeda. As explicações dadas no comício do passado sábado, acolhidas no cenário parecido ao da Última Ceia, tantos eram os apóstolos beatos e perfilados, foram atabalhoadas e nada esclareceram.

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  • 16:29 | Segunda-feira, 03 de Março de 2025
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Actualizo as palavras de António Costa, um político filho das circunstâncias, na hora da despedida: um primeiro-ministro não pode estar sob suspeita.

Parece ser o que está a suceder a Luís Montenegro, cabendo especificar que as suspeitas são meramente políticas e não judiciais, particular bastante para que, por agora, se separem as situações, deixadas em aparente remanso e quietude, num simulacro de paz duradoura.

O primeiro-ministro foi imprudente na gestão do caso da empresa familiar, que está longe de estar resolvido. Cada dia que passa, vem mais lenha para a fogueira, as dúvidas adensam-se, a intriga azeda. As explicações dadas no comício do passado sábado, acolhidas no cenário parecido ao da Última Ceia, tantos eram os apóstolos beatos e perfilados, foram atabalhoadas e nada esclareceram.


Bons conselheiros – aqueles que, por terem vida própria, muito poucos, não se inibem de desagradar ao chefe – ter-lhe-iam feito ver que o assunto devia ter sido morto à nascença. Como? Aconselhando-o a dissolver a sociedade, limpando de vez a toxicidade que ela arrasta. Com um pedido de desculpas, a algazarra poderia continuar, mas o caso morreria ali.

A “Spinumviva” gerou claramente um conflito de interesses e provocou um inaceitável acréscimo remuneratório do primeiro-ministro. Não há como fugir disto. Imprudência? Facilitismo? Talvez tudo isso. Sair da sociedade, não resolve. A vantagem de Montenegro continua viva, através da mulher, que se mantém sócia, e com quem está casado em comunhão de adquiridos. E é líquido que, mantendo-se a empresa em actividade, ela vive muito à custa do seu principal activo, que é o primeiro-ministro, que não carece de constar como sócio para ser um íman que atrai interessados nos negócios e cúmplices na política. A sua impressão digital mantém-se, não se apagou com a passagem da quota para os familiares.

Um político experimentado envolver-se nestas trapalhadas só se explica por uma de três razões: ou desvaloriza o escrutínio cada vez mais severo da vida dos políticos – diga-se que, por vezes, exagerado e descabido, a ponto de afastar da esfera pública os mais ciosos da reserva da sua intimidade -, ou faz de todos nós uns tolos e desqualificados que tudo aceitam, ou desconhece a lei –  facto inaceitável, num advogado.

A displicência, diria mesmo a infantilidade a raiar a sobranceria, com que os mais altos responsáveis da Nação, estes e os outros, nas cavernas da ética, abordam estas matérias, é inquietante.

Perigoso, porém, é sabermos que este assunto só é motivo de alarme por ter sido investigado pelo quarto poder. De outro modo, ficaria silenciado, com a moral a ser vítima de mais uma facada entre costelas.

Uma coisa é certa: neste momento, independentemente dos juízos partidários e do silêncio cúmplice de Marcelo, antes tão agitado e opinativo, omnipresente e omnisciente, o que conta é a percepção negativa que está instalada na opinião pública. E essa pode ser fatal, se a correnteza de más notícias ganhar forma.

Entretanto, a crise política que se anunciava com o chumbo de uma moção de confiança, a apresentar pelo governo, foi adiada para a discussão do próximo orçamento, em cima das eleições autárquicas. Com os votos contra de toda a oposição, o governo cairia e o país iria para eleições. A inesperada mão salvadora do PCP afastou o pior cenário. Um jubiloso urro gutural extravasou das entranhas do primeiro-ministro, um quase náufrago, de futuro incerto.

A alta política, entretida a especular sobre os eventuais votos no bornal, em sacrifício dos interesses nacionais, tricota-se nos bastidores e obedece a critérios e razões que estão longe do entendimento médio do cidadão vulgar.

Mas, mais cedo do que se pensa, os fiscais das almas e os notários das virtudes terrenas virão a terreiro, e apressar-se-ão a desenterrar o osso e zurzir no esquife.

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Publicado em Opinião