1. Mário Soares era uma pessoa muito especial. Já quase não há gente com a sua grandeza.
Lembro-me do momento em que Bettino Craxi fugiu de Itália para não ser preso numa inventona que, anos mais tarde, se descobre ter sido congeminada pela máfia. Craxi havia sido sentenciado desde o processo de Palermo em 1986, e não podendo matá-lo, a máfia, associada ao que sobrava da democracia-cristã de Giulio Andreotti, decidiu acusá-lo de corrupção. Um processo lamentável que haveria de o impedir de voltar ao seu país em vida.
Soares, já Presidente da República, poderia esquecer-se do seu amigo de muito tempo, achar que qualquer ligação conhecida o poderia prejudicar. Mas não, foi visitá-lo à Tunísia e esteve-se nas tintas para o que no Parlamento dele disseram. Coisas cabeludas, por acaso, muito próximas da acusação de traição que acompanharam a amnistia dos implicados nos atos terroristas das FP 25.
Craxi foi um grande político, coisa que alguns neófitos da nossa vida hodierna desconhecem. A economia italiana cresceu como nunca, chegando a ser a quinta maior do mundo; a inflação desceu a valores ínfimos, a mais baixa depois da grande guerra; a justiça ganhou autonomia e verificaram-se os grandes reveses na sua estrutura criminosa transnacional. Foi também Craxi quem esteve à frente dos socialistas europeus, mais do que Mitterrand, no apoio às novas democracias da Grécia, Portugal e Espanha.
2. A vida política de hoje parece não comportar qualquer humano com a dimensão inegável de Mário Soares. Há cada vez mais gente autocentrada, acusadora, antes de tudo desmerecedora de integrar um coletivo de ideias e de propósitos. Um partido é, previamente, uma família, e nas famílias não se bate nos pais, não se dão reprimendas aos filhos em público, não se tratam os irmãos como salafrários, mesmo que o sejam.
Quando o Ministério Público acusou Miguel Macedo foram poucos os que vieram a terreiro defendê-lo; quando Tiago Brandão Rodrigues foi enxovalhado por um cretino a propósito de uma comparticipação para estudos superiores, quase não houve quem saísse da toca. Estou de alma cheia porque, independentemente dos partidos, vim a terreiro público defender estes dois políticos. Depois outros, e outros…
O PS cometeu o maior erro da sua vida quando autorizou a saída de Rocha Andrade, João Vasconcelos e Jorge Oliveira do Governo. Sei bem que, no seu íntimo, o chefe do executivo não queria ter chegado aí, mas a parte menor da geringonça sempre foi puritana. E tenho pena, uma tristeza profunda, de não continuar a poder pedir desculpa aos meus amigos Rocha e Vasconcelos pelo que lhes fizemos.
Inventámos umas regras de hospitalidade que só permitem aos deputados receber prendas até 150 euros. É uma imbecilidade esta regra, própria de pessoas que vivem fora da realidade. Acreditar que se pode comprar um governante com uma viagem a um jogo de futebol é de meninos bambinos. Os fatinários da política não vão em futebóis, só querem coisas em offshores.
Detesto gente (já posso detestar pelo tempo de vida que resta) que não tem o mínimo de pudor em calcar quem quer que seja. E com este tipo de comportamento regressou uma outra forma de repúdio, de um elitismo sem sentido, que já tinha visto no tempo em que Fernando Gomes foi ministro – se vem do Norte alguma coisa deve ter como defeito. Mesmo gente do Norte, que passou a conviver com a velha maledicência lisboeta, já perdeu a vergonha. Que saudades do Coronel Aventino e do Nuno Brederode, gente que falava do país com graça, mas sem calcar quem de fora de Lisboa vinha; que grande Miguel Esteves Cardoso, que fala da nação que deixa a chave na porta e lança uma asneirada perante a chegada de forasteiro…
3. O caso Miguel Alves é um caso paradigmático do que acima escrevi. Será que podem ouvir o que o homem disse? Será que podem tentar conhecer alguma coisa da vida real e da ação autárquica, antes dos despautérios profusamente difundidos?
Olhemos pela substância compreensível – todos conhecemos pessoas próximas que compraram casas, apartamentos, escritórios, garagens, em projeto. Nessa circunstância pode haver um sinal, pode haver uma entrada de valor significativo, pode haver, até, o pagamento total do espaço. E ainda não existe fisicamente. A realidade contratual determina o valor a devolver se o mesmo contrato não for cumprido e estas regras são do conhecimento do mais modesto dos portugueses.
A autarquia de Caminha fez exatamente isso – perante a iniciativa de um particular, a edilidade decidiu fazer com ele um contrato futuro e antecipou um valor. A não execução do projeto obrigará à devolução do dinheiro, o não cumprimento do contrato obrigará à entrega ao município de bens de valor igual à entrada, mais juros. Um jurista,com nota 10 de final de curso, sabe tudo isto!
Poderão dizer que é um mau negócio, que a autarquia deveria comprar os terrenos, fazer os projetos e construir a obra, mas essa é uma avaliação política e que não intervém nem questiona a legalidade dos atos praticados. Depois das decisões tomadas, Alves voltou a ganhar eleições e por larga maioria.
Haverá tráfico de influências? Olhando o que foi explicado, não poderemos encontrar uma prática ilegal (mesmo que politicamente discutível) de uma pessoa para se aproveitar da posição de privilégio obtendo favores ou benefícios em troca de pagamentos em dinheiro ou em privilégios;
Haverá corrupção? Alguém indica a vantagem indevida em troca da prestação de um serviço? Do que se conhece, já muito escrutinado foi Alves, nos atos praticados não há (i)lícito com contrapartida indevida para o próprio ou terceiro. Aqui só haverá compensação para o município;
Haverá associação criminosa? Criou Alves algum grupo, viu-se em ação gangsteriana com alguém, comeu e bebeu à larga com alguém, foi de férias com algum dos que são conhecidos no processo? Só os paranómicos podem pensar assim. E quem tenha falado um dia com Alves sabe que isso era improvável.
Haverá abuso de autoridade? Alves diz em entrevista que teve o cuidado de dar tempo aos serviços para que estes cumprissem as suas funções. Mais, apresentou o projeto, nas suas idiossincrasias, à Assembleia Municipal e nesta teve votos de uma parte da oposição.
Não sei se o PS está mais interessado em ser um pardieiro de egos enormes ou um partido. Se a opção for a primeira, não contem comigo. Mas todos os que forem maltratados na praça pública podem computar as minhas linhas na comunicação social independente e tolerante que ainda existe. O Expresso, o Público, o DN, o JN dão notícias e aceitam opiniões minoritárias. Nestes casos, quem defende os previamente condenados na praça pública pode ser mais do que minoritário, pode mesmo ficar sozinho.
Ascenso Simões