A prova dos 9

Se a isto, Montenegro, somando, for capaz de refrescar a sua equipa governativa, e refrescar é abdicar do concurso da tralha lapuz, prescindir dos arrivistas petulantes e sem emprego e das "girl's" sedutoras, é purgar o pus da clientela ávida, é chamar gente de perfil conciliador, competente, com vida profissional própria, gente que tem sempre a mala feita e as chaves do carro pessoal no casaco, então o "reinado" poderá não ser assim tão curto quanto muitos prognosticam.

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  • 12:25 | Segunda-feira, 25 de Março de 2024
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Feito o apuramento final, uns enfezados 54.544 votos separam os dois concorrentes no topo da tabela, a margem mais curta em toda a história da democracia.

A corrente opinadora dominante que, acompanhando os novos ventos, já recrutou no alfobre do Chega, augura tempos difíceis a Montenegro e vaticina-lhe um curto consulado. Se olharmos à fraca representação parlamentar da coligação e à relação de forças em presença, talvez assim seja, mas as circunstâncias e os taticismos habituais poderão levar-nos num sentido ligeiramente diferente e com menos obstáculos. Vejamos. O governo, ao que se sabe, recorrerá o mais que puder ao legítimo expediente dos decretos aprovados em Conselho de Ministros, descentrando o vértice da decisão política, e retirando ao PS a partilha dos louros colhidos com as medidas mais populares. Lembremos que a oposição, mesmo chamando os diplomas à apreciação no parlamento, só conseguirá o seu chumbo se propuser uma alternativa que obtenha aprovação. Tarefa que carece da convergência de toda a esquerda, ainda ácida e rezingona, o que é previsível, e do Chega, o que é mais difícil, diria até maquievalicamente esquizofrénica e desnatural.

Enveredando por esse caminho destruidor, Ventura, que numa errância estouvada e pedinte começou por exigir um acordo governativo e já vai na disponibilidade para uma negociação medida a medida, não se aguentaria muito tempo a cavalgar um discurso trucidante que só lhe tem dado vantagem. A verdade é que a direita fará tudo o que puder, engolirá os sapos que tiver de digerir,  enrolará as bandeiras que tiver de arrear, para que a esquerda não volte ao poder. Esse será o seu objectivo a curto prazo.

O mesmo aconteceu com a esquerda, em 2015, ao fazer tábua rosa das divergências profundas, elegendo como prioritário e determinante o que no imediato as juntava. Uma e outra, cada uma a seu tempo, pragmáticas. Foi, e é, o tempo da prevalência das considerações práticas, em detrimento das noções ideológicas, é a hora da “realpolitik”.


No dia em que o Chega contribuir, com a aprovação ou a abstenção, para apear o governo, poderá contratar fanfarra e largar confetis, mas na noite do próximo festim, já não contará para a aritmética eleitoral. O seu eleitorado, que é mais de descontentamento com a situação e de crença social do que de identidade com princípios, não lhe perdoará a traição, e minguará.

Por outro lado, a Pedro Nuno Santos, em tempo de reorganizar o partido e de lamber as feridas de uma derrota pesadíssima, não lhe interessa eleições tão próximas, fugirá delas como o diabo da cruz, sabendo que duas derrotas em legislativas o afastariam da liderança do PS.

Em síntese, um e outro vão falar, ameaçar, mas, calculadamente, não vão avançar com decisões de ruptura. Um ou outro, estudando-se. Entretanto, o novo PM vai encontrar os cofres cheios, um excedente orçamental de 1.2% do PIB, que lhe dará margem para cumprir as principais promessas eleitorais: avançar com o programa de emergência para o SNS, valorizando também a carreira médica, fazer as pazes com os professores, com a recuperação do tempo de serviço, atender às polícias, com o suplemento de missão (sabendo que vai abrir uma caixa de Pandora, onde moram a GNR, o SEF, os guardas prisionais, as Forças Armadas), reconciliar-se com os reformados, aliviar a carga fiscal,  evitar a fuga de talento jovem.

Se, no imediato, apostar forte nestas matérias, demonstrando abertura ao diálogo e capacidade negocial, ganhará um crédito adicional, pessoal e político, que lhe poderá ser útil no estender do estado de graça, desejável e quase obrigatoriamente devido a quem começa funções. Em parte do eleitorado flutuante e do descontente esbater-se-ão as dúvidas e as rejeições. E instável como é, vai enfileirar com quem lhe ponha pão na mesa e lhe dê mais dinheiro para pagar as contas ao fim do mês na mercearia que vende fiado.

Não alcanço que seja fácil para a oposição, à esquerda e à direita, votar contra estas medidas, que vão ao encontro das populações e das corporações. E elas passarão, mesmo as de natureza fiscal, que terão de ir ao parlamento. Admitindo que nesta janela de 60 dias, Montenegro consiga colocar no terreno as medidas mais populares, aprovadas a sós, e, entretanto, venha a ganhar as europeias, o PSD estará em condições, após o Verão, perante um eventual chumbo do orçamento, de colocar no Chega e na esquerda o ónus de precipitar o país para uma crise política e novas eleições, interrompendo a continuidade de um governo com meio ano de vida. Se a isto, Montenegro, somando, for capaz de refrescar a sua equipa governativa, e refrescar é abdicar do concurso da tralha lapuz, prescindir dos arrivistas petulantes e sem emprego e das “girl’s” sedutoras, é purgar o pus da clientela ávida, é chamar gente de perfil conciliador, competente, com vida profissional própria, gente que tem sempre a mala feita e as chaves do carro pessoal no casaco, então o “reinado” poderá não ser assim tão curto quanto muitos prognosticam. Sem desconsiderar que até ao Verão de 2026, dois anos portanto, não abundam os espaços constitucionais onde possa caber a dissolução da Assembleia da República.

Aos mais pessimistas, lembro, finalmente, que a democracia, na sua essência, é tudo isto, cedência, negociação, avanços, recuos, conciliação, incerteza, instabilidade, reequilíbrio, expectativa, desilusão, vertigem. Compromisso.

Para uma democracia saudável, nada pior do que uma maioria absoluta, castradora, autista, monótona. Sempre cega. E surda. Uma maioria absoluta é sempre um parêntesis na democracia, é uma “ditadura” com punhos de renda e luvas de pelica, polvilhada de açúcar e regada com mel, que a força dos votos legitima.

Habituemo-nos à boa nova.

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Publicado em Opinião