Na passada sexta-feira, dia 19, ao comemorar os 139 anos do nascimento de Aristides de Sousa Mendes, foi inaugurado o museu com o seu nome, em Cabanas de Viriato (concelho de Carregal do Sal), na “Casa do Passal”, que foi residência da família do Cônsul, com a presença do Presidente da República, tendo como objectivo divulgar o acto de consciência deste heróico português e “os valores da tolerância e da paz”.
Aristides de Sousa Mendes exercia rotineiramente as suas funções de cônsul de Portugal em Bordéus, até que em Setembro de 1939 eclodiu a II Guerra Mundial e os pedidos de vistos de entrada em Portugal foram aumentando, o que levou o Ministério dos Negócios Estrangeiros (pasta que Salazar acumulava com a presidência do Conselho) a enviar a Circular 14, datada de 11 de Novembro desse ano, a proibir os diplomatas portugueses de concederem vistos a certos refugiados, sem autorização prévia do Ministério, particularmente a judeus, cidadãos de países de Leste e exilados políticos.
Em Maio de 1940, Hitler manda invadir os Países Baixos e a França e milhares de refugiados dirigem-se para o consulado português na esperança de obter um visto para Portugal que era um país neutral (por pressão dos velhos aliados britânicos e apesar da simpatia de Salazar por Hitler), de onde poderiam fugir para o outro lado do Atlântico.
O cônsul enviou telegramas ao seu ministério a solicitar autorização para a concessão de vistos, mas só depois de ter aberto o consulado aos refugiados que precisavam de abrigo e comida é que recebeu de Lisboa uma ordem a proibir qualquer concessão de vistos a judeus e nos casos de outros requerentes apenas se tivessem alojamento assegurado e um fiador.
Durante 3 dias e 3 noites, Sousa Mendes, a sua mulher, Angelina, dois dos seus filhos e um rabino polaco, passaram, até à exaustão, milhares de vistos. Aristides ordena ainda ao vice-cônsul em Baiona para conceder vistos sem distinção de nacionalidade, raça ou credo, e perante a recusa daquele, ele próprio vai a Baiona passar vistos e, já depois de suspenso de funções por Salazar, ordena o mesmo aos funcionários das fronteiras de Hendaye (França) e de Irun (Espanha).
Muitos vistos não foram registados, pelo que não se sabe o número exacto, mas calcula-se que cerca de 30 mil refugiados, incluindo 10 mil judeus, terão sido salvos por Aristides de Sousa Mendes. Salazar não lhe perdoou, cortou-lhe o vencimento para metade, aposentou-o compulsivamente e proibiu-o de exercer a advocacia. Aristides acabou a comer na cantina da Assistência Judaica Internacional, onde também obteve ajuda para alguns dos filhos irem para os EUA, considerando-se ele próprio um refugiado no seu país. Morreu em 1954, mas só em 1989, por votação unânime na Assembleia da República, foi reintegrado postumamente na carreira diplomática. Ainda recebeu condecorações e honras de panteão.
Congratulamo-nos com a abertura do Museu Aristides de Sousa Mendes (activistas da Olho Vivo participaram, em 6.04.2014, no “cordão humano” à volta da Casa do Passal, em ruínas apesar de classificada, em 2011, como Monumento Nacional, exigindo à Directora Regional de Cultura do Centro, ali em visita, mais apoio para a sua total recuperação e transformação num local de memória da exemplar acção de Aristides), que esperamos seja efectivamente um centro de estudo e divulgação não só do acto de coragem do Cônsul em Bordéus, como também da memória do Holocausto (o genocídio perpetrado pelos nazis que vitimou 6 milhões de judeus, 500 mil ciganos, e milhares de comunistas, anarquistas, socialistas, democratas anti-fascistas, homossexuais e muitos outros inocentes) e de outros crimes contra a humanidade cometidos ao longo da História, de forma a contribuir para a formação de novas gerações que fomentem a paz e a amizade entre todos os povos.
Hoje, honrar Aristides de Sousa Mendes é seguir o seu exemplo de coragem, humanismo e desobediência a qualquer injustiça, denunciando e não tolerando qualquer complacência com a falta de solidariedade com outros refugiados, sejam de guerras ou da fome, como se vê com as políticas de imigração da UE (que já transformaram o Mediterrâneo num “mar de extermínio” e fazem dos imigrantes os “novos judeus”, bodes expiatórios das crises económico-financeiras) e com genocídios em curso, como o perpetrado pelo governo extremista de Israel contra o povo da Palestina, em Gaza e na Cisjordânia, que já provocou quase 39.000 mortos (70% dos quais mulheres e crianças), perto de 90.000 feridos e 500.000 em níveis de fome catastrófica, segundo a ONU, com a revista médica “The Lancet” a estimar que, com as “mortes indirectas”, o número de vítimas mortais será de 186.000 pessoas.
Por isso, ao verificarmos a presença, na inauguração do Museu Aristides de Sousa Mendes, do embaixador de Israel, assumido apoiante do governo criminoso de Tel-Aviv, que já em Maio tinha sido recebido, com pompa e circunstância, na Casa do Passal, pelo presidente da Câmara Municipal de Carregal do Sal, e por membros da Fundação Aristides de Sousa Mendes, não podemos deixar passar este insulto à memória do heróico cônsul e aos descendentes de sobreviventes do Holocausto que têm gritado “Não em nosso nome!”
É o caso de Norman Finkelstein, judeu, cientista político e professor na Universidade de Princeton (EUA), cujos pais sobreviveram aos campos de concentração nazis, que há mais de 20 anos classificou Israel como “um Estado supremacista judeu” que comete o crime de apartheid contra o povo palestiniano que, com a ocupação (já considerada ilegal pelo Tribunal Internacional de Justiça) e a colonização israelita, “sofre horrores semelhantes” aos que os judeus sofreram nos guetos e com os “pogroms”.
Todos os discursos de membros do governo, invocando os direitos humanos e o dever de salvar refugiados, soam a hipocrisia enquanto Portugal não seguir o exemplo de Sousa Mendes, posicionando-se internacionalmente contra o genocídio de palestinianos e contra a recente decisão do parlamento e do governo de Israel de não aceitação de um Estado palestiniano, em violação de várias resoluções da ONU.