No dia da votação final global do orçamento, pelas bandas do palácio de São Bento, houve gritaria, azedume, altercação, baixaria, comentários de mau gosto, gestos deselegantes, ruídos desagradáveis e hostis, que incomodaram o justo sono dos plácidos e soturnos monges beneditinos de clausura.
E não foi por ressabiamento dos derrotados na votação ou por euforia excessiva dos ganhadores do escrutínio, exageros que, não sendo simpáticos nem recomendáveis, sempre encontrariam indulgência na tolerância e na cordura dos que carregam mentes abertas e espírito livre, murchando desse jeito o azedume truculento.
Os pendentes assemelhavam a austera fachada do edifício à montra de um bazar dos chineses. Insurgentes contra o fim do corte de 5% no vencimento dos políticos, em vigor desde a intervenção da troika, quando, de joelhos, mão estendida e chapéu na mão, reverentes e submissos, fomos um protectorado infeliz, às mãos de instâncias internacionais, sôfregas, predadoras, imorais.
Conhecedores da incoerência recorrente dos seus dirigentes, bons cumpridores do que anunciam de mal, zelosos fazedores do que verberam, veremos em breve que não levarão os princípios até ao fim, abdicando do benefício que lhes cabe, mas que podem rejeitar, se as suas beatas consciências assim o determinarem. Mas, não sendo adivinho, creio bem que podemos esperar sentados por essa fantasia e ilusão. O mais certo é indignarem-se, mas ficarem com a reposição dos vencimentos na algibeira. É incoerente, mas dá jeito e paga as contas.
O Chega, mercê das suas demasias, está a transformar-se numa associação de poucos créditos, ridicularizada pelo seu corre-corre atrás do prejuízo, diminuída pela sua doentia tendência para a criação de factos pífios, menorizada pela atracção pelo escândalo fácil, chacoteada pelas manifestações anémicas que por tudo e por nada convoca, sempre azucrinando os imigrantes e penalizando a cor da pele.
Faz barulho, protesta, é irreverente, não fosse grave o que diz e desdiz, achar-se-lhe-ia graça, teria piada, embora com as distâncias prudentes que o decoro impõe. Mas, para os temas que contam e também para os de intendência, ninguém o chama, é irrelevante, descartável, reduzido à condição de figurante, no teatro político nacional, condição que o frustra e revolta.
A falta de ideias é confrangedora, a prestação dos deputados, quais ajudantes do corneteiro, é patética, a pobreza do discurso é deprimente, a eficácia das propostas é nula, o foco na limpeza é obsessivo, tudo se resumindo a um grupo que vive da contestação e da denúncia infantis, incapaz, porém, de transmitir confiança e seriedade.
À força de estar sempre a carregar na tecla da corrupção, e de se apresentar como homem puro e asséptico, isento de germes, bactérias e fungos, não se desviando desse guião insípido e insosso, torna-se entediante, maçador, repetitivo, desinteressante.
Não traz novidade, muito menos conforto. Quando, no palco, mergulhado num transe exorcista, André se ajoelha, finge rezar e invoca o nome de Deus em vão, é a fraude em forma de homem, a versão adulterada do devoto pio e cumpridor, que nos entram pela casa adentro.
Quem dispara a esmo, contra tudo e contra todos, acaba por atirar contra si. O caso das tarjas é revelador da inconsistência da sua oratória e da sua absoluta dispensabilidade no xadrez político.
Com estas atitudes cegas e irrazoáveis, ofensivas do bom senso, que os partidos devem ser os primeiros a seguir, o Chega torna-se incredível e inconfiável, fautor de episódios deprimentes e indecentes.
O seu líder é errante, volúvel, inconstante, labuta, estrebucha, de acordo com o que os ventos lhe sopram, numa indisfarçável busca por um lugarzinho no ministério. Em dias mais frenéticos e excitantes assemelha-se ao regente de uma desafinada e desajeitada banda filarmónica. A ambição é insana, e tão depressa brande a espada de lâmina aguçada como cedo se aconchega num colo oportuno, desprezando valores e doutrinas.
Cansado de ser acólito de sacerdotes em missas que são as suas, ansioso por palco e luzes, desejoso de protagonismo que de outro modo não teria, autonomizou-se, sabendo que só nos extremos haveria vaga para os seus números extravagantes. Não está lá por convicção, mas por conveniência.
Ventura é só um produto da sua infinita vaidade pessoal e das circunstâncias do descontentamento popular, que o regime democrático gerou.
Não tendo lugar de relevo no seu partido do coração, desfez-se do percurso e das convicções, construiu uma figura que sabia servir o paladar dos que se babam por ódios e sonham com perseguições, agarrados a saudades.
Contássemos apenas e só com o seu precioso contributo, continuaríamos na “piolheira”, termo acintoso com que a “Geração Coimbrã” e uma plêiade de intelectuais e escritores de oitocentos classificava o nosso país, longe do deslumbre da Europa, retratando a inveja, o oportunismo e o compadrio dominantes.
Mestre André terá instinto e faro políticos, não contrario quem o diz, nem isso é importante. Mas falta-lhe o resto, que é muito, para ser um líder respeitável: noção, tino, peso e medida.
Um homem assim, cobiçoso, inconstante e sanguíneo, torna-se perigoso.