A madame no velocípede do padre Ernesto

– Aprende. Nem tem velocípede!… Agora, na Quaresma, é que se aplicou mais, no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas ontem, no bosque, zás, terra… Perna esfolada. Aqui.

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  • 21:58 | Sábado, 27 de Março de 2021
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Antes de Jacinto descobrir a beleza incomparável do Douro e a profunda miséria das suas gentes, vivia, abúlico e cansado, na Paris de fim de século, numa casa recoberta de livros, de luxos e da mais avançada tecnologia do seu tempo, incluindo uma antecipação do serviço de notícias e do audiolivro.

À sua moradia, ia a melhor sociedade, incluindo um grão-duque, que lhe enviou um peixe, pescado na Dalmácia, para uma ceia ornamentada pela elegância das senhoras, pelo espírito de cavalheiros das artes e pelo dinamismo de homens de negócios. Passou-se isso a meio do capítulo quarto, quando apareceu, esbaforido, segurando um lenço perfumado, a personagem chamada António de Todelle, que perguntou:

«– Já veio?… Já cá está o grão-duque?


Não, Sua Alteza ainda não chegara. E Madame de Todelle?

– Não pôde… No sofá… Esfolou uma perna.

– Oh!

– Quase nada… Caiu do velocípede…

Jacinto, logo interessado:

– Ah, Madame de Todelle anda já de velocípede?

– Aprende. Nem tem velocípede!… Agora, na Quaresma, é que se aplicou mais, no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas ontem, no bosque, zás, terra… Perna esfolada. Aqui.

E na sua própria coxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão. Efraim, brutal e sério, murmurou: – Diabo! É no melhor sítio! – Mas Todelle nem o escutara, correndo para o director do Boulevard, que se avançava, lento e barrigudo, com o seu monóculo negro semelhante a um pacho.»

Vamos à hermenêutica. Então, a madame anda, pelo bosque, a aprender a arte dos velocípedes com um padre? E com quem mais? Ao cair, quem a ajudou a levantar-se? Estando ferida, foi conduzida ao colo para uma carruagem? Afagada, talvez, por conta da dor que sentia? O que pensa o ditador destas liberalidades desportivas? Não haverá mais perigo, para o seu circunspecto regime, numa bicicleta a toda a velocidade, montada por uma mulher, que assim acelera o seu desejo de independência, do que num militar bonzo, em representação de um exército fraco?

– Diga lá a esse escrivão que já vem tarde.

 

 

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Publicado em Opinião