Antes de Jacinto descobrir a beleza incomparável do Douro e a profunda miséria das suas gentes, vivia, abúlico e cansado, na Paris de fim de século, numa casa recoberta de livros, de luxos e da mais avançada tecnologia do seu tempo, incluindo uma antecipação do serviço de notícias e do audiolivro.
À sua moradia, ia a melhor sociedade, incluindo um grão-duque, que lhe enviou um peixe, pescado na Dalmácia, para uma ceia ornamentada pela elegância das senhoras, pelo espírito de cavalheiros das artes e pelo dinamismo de homens de negócios. Passou-se isso a meio do capítulo quarto, quando apareceu, esbaforido, segurando um lenço perfumado, a personagem chamada António de Todelle, que perguntou:
«– Já veio?… Já cá está o grão-duque?
Não, Sua Alteza ainda não chegara. E Madame de Todelle?
– Não pôde… No sofá… Esfolou uma perna.
– Oh!
– Quase nada… Caiu do velocípede…
Jacinto, logo interessado:
– Ah, Madame de Todelle anda já de velocípede?
– Aprende. Nem tem velocípede!… Agora, na Quaresma, é que se aplicou mais, no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas ontem, no bosque, zás, terra… Perna esfolada. Aqui.
Vamos à hermenêutica. Então, a madame anda, pelo bosque, a aprender a arte dos velocípedes com um padre? E com quem mais? Ao cair, quem a ajudou a levantar-se? Estando ferida, foi conduzida ao colo para uma carruagem? Afagada, talvez, por conta da dor que sentia? O que pensa o ditador destas liberalidades desportivas? Não haverá mais perigo, para o seu circunspecto regime, numa bicicleta a toda a velocidade, montada por uma mulher, que assim acelera o seu desejo de independência, do que num militar bonzo, em representação de um exército fraco?
– Diga lá a esse escrivão que já vem tarde.