Se perguntarmos aos portugueses qual será o órgão de soberania onde a liberdade deve ser a base do exercício, teremos uma resposta maioritária – a Assembleia da República.
O Parlamento deveria ser, pelo número de eleitos, pela representação territorial, pela identificação com a comunidade e pela distribuição partidária, esse tal espaço de liberdade, de todas as liberdades, mas não é.
Vivi o microcosmos do palácio de São Bento em todas as situações. Pelo lado da burocracia, pelo facto de ter sido um dos 230, ora defendendo o Governo ora me opondo, e pelo lado do Governo em que servi, prestando contas. Nessas quase três décadas assisti a todo o tipo de prestações, a todo o tipo de implicações no exercício da liberdade de cada um dos eleitos. É também essa experiência que me leva a dizer que as diretorias têm vindo a ganhar uma enorme força, a imposição de limitações tem vindo a crescer. Não é assim em todos os partidos, mas é hoje uma prática muito relevante.
Já não vivi o período cavaquista, uma década em que o peso das maiorias absolutas exercia uma limitação no debate político e na informação que era difundida. A segunda parte da década de 1990, porém, terá sido a que mais permitiu o exercício da iniciativa, mais favoreceu a autonomia dos eleitos.
Olhemos as práticas internas dos grandes grupos políticos que tiveram ou têm assento parlamentar.
O CDS sempre foi um partido onde a liberdade da ação parlamentar se fez sentir. Essa liberdade via-se mesmo em situação de poder. Tudo se ligava ao facto de ser, na sua representação, um partido de quadros, uma decorrência da participação política de gestores e de profissionais liberais.
As divergências não eram tanto ao nível ideológico, eram mais no observar de opções que implicassem os diversos interesses económicos ou religiosos, mas não deixava de representar uma liberdade de exercício muito reconhecida.
No tempo de hoje, no espaço que se pode considerar das direitas, a Iniciativa Liberal é o partido e o grupo parlamentar mais livre, mesmo que se comecem a constatar brechas típicas dos partidos tradicionais. As divisões internas na IL vão levar, num primeiro tempo, à imposição do sentido de voto e, num tempo sequente, à escolha dos apoiantes da maioria.
Regressando ao espaço das direitas, olho o Chega e tento analisar o seu comportamento com base em premissas tradicionais, verificando a existência política de cada um dos agentes para além da direção partidária ou do líder. Mas esse trabalho é inglório.
O Chega não é partido, é um movimento. Como não tem um programa, como se alicerça na comunicação e nos factos momentâneos, como nasceu como uma formação unipessoal, não se encontram elementos de partilha de ideias, de afirmação de valores transversais. Encontram-se, isso sim, componentes mínimos de resposta ao descontentamento e nessa resposta há só a liberdade de falar mais alto, de invetivar de forma mais insolente.
Ora, sendo um antipartido, também não pode observar a liberdade individual, a aceitação de visões diferentes perante elementos base do combate político. Assim, temos nesta formação política a ausência de liberdade que é aceite pelos que a deveriam reclamar e promover, os deputados.
Olhemos agora para o principal partido da oposição. O PSD foi perdendo, ao longo das duas últimas décadas, espaço de liberdade de exercício. Desde logo o princípio é o da disciplina de voto, o que contrasta com o que acontece com os deputados socialistas.
O PSD não é hoje mais do que um aglomerado de solidariedades. Umas que vêm do território, outras da JSD e outras que resultam dos interesses. Este partido parece ter deixado, por isso, de ser um espaço amplo de liberdade.
Resta o Partido Socialista. Já dissemos atrás que no PS o princípio existente na relação dos deputados socialistas com o seu partido é o da liberdade de exercício. Deste universo amplo, quase infinito, a disciplina limita-se aos Orçamentos do Estado, às moções de censura e de confiança, às questões de natureza constitucional.
A forma como os deputados socialistas portugueses exercem o seu mandato é das mais livres do mundo ocidental, a esmagadora maioria dos partidos socialistas e sociais democratas congéneres observam campos vastos de intervenção dos diretórios partidários.
Este comportamento, que resulta da cumulação de dois valores – liberdade e responsabilidade – tem retirado unidade, eliminado capacidade de intervenção e limitado os apoios aos Governos apoiados pelo PS? De todo! Não há matérias onde os parlamentares do PS, a cada período de comando dos destinos do país, não tenham afirmado solidariedade e compromisso.
Durante o meu tempo de parlamentar votei muitas vezes sozinho. Em cada sessão legislativa foram algumas as divergências com a maioria dos meus camaradas. Nunca senti qualquer discriminação, nem mesmo quando estive contra os diplomas da IVG e da eutanásia. O essencial é a total transparência e nunca deixar de partilhar, com antecedência, qual a nossa visão, o nosso caminho.
Estamos no termo da primeira sessão legislativa completa desta legislatura. Uma legislatura que se tem mostrado mais dura no combate, mais difícil perante os casos que toldam as grandes decisões. Mas, mesmo assim, os deputados do PS conseguem ser a liberdade dentro da casa da liberdade.
O problema mais relevante que se coloca aos parlamentares portugueses é, porém, o da qualidade das intervenções. A oratória, a retórica, a capacidade de elaborar sobre os temas integrando-os em áreas vastas do conhecimento, estão a perder-se. Há parlamentos onde se exige que os deputados e senadores “parlem” sem papel e essa obrigação base leva a outras dimensões do debate e do sentido fundador das assembleias políticas. Falar lendo um papel, por vezes de forma muito insuficiente, não ajuda na convicção dos argumentos. Falar sem papel só mete medo até à terceira intervenção. A nossa mente funciona como um relógio que nos ajuda mais quando a queremos utilizar de forma mais livre e que é também mais intensa.
Ascenso Simões
(Foto DR)