Um Papa que vem dos bairros pobres da Argentina, que é neto e emigrantes, que viveu o lastro do colonialismo, que sabe o que o capitalismo fez de exploração dos países em desenvolvimento, não constrói uma nova leitura da economia a partir de velhos conceitos
Na receção a Francisco que aconteceu na Universidade Católica, a Prof. Isabel Capeloa Gil anunciou a criação e uma nova cátedra a que deu o nome de Economia de Francisco e Clara.
Os menos dados às coisas da Igreja poderão ter pensado que se tratava de estudar o pensamento do atual Bispo de Roma, mas não é de todo assim.
A Economia de Francisco é a de Francisco de Assis, uma visão do mundo de hoje a partir de uma grandeva leitura das suas circunstâncias. Em boa verdade, ela é fundada numa visão de mundo a partir do Cântico das Criaturas, onde o universo e a terra, com os seus elementos fundadores, se assumem no abrigo da bênção do Senhor.
Ao contrário do que aconteceu ao longo do último século, estas proclamações da Igreja sobre sociedade e economia não partem do sucessor de Pedro, mas são trabalhadas por este a partir de uma outra dimensão filosófica e teológica.
Há, contudo, uma pergunta que interessa fazer antes de uma abordagem ao que pode ser a Economia de Francisco e Clara. Quem é Clara que se lhe junta para construir um outro passo na leitura do mundo?
Clara foi a fundadora do ramo feminino da Ordem Franciscana, as Clarissas. Sendo bela e nobre, abandonou a vida de privilégios para se dedicar às pobrezas, em matéria e em espírito.
Mas o que é, em boa verdade, a Economia de Francisco e de Clara?
Não é uma doutrina ou um manual, não é uma obrigação muito menos dogma, não é um programa político nem um panfleto reivindicativo. Se quisermos é uma incitação que assenta num decálogo próximo deste que aqui indico:
Os bens comuns (1). A partir da Fratelli tutti e da Laudato si, a Economia de Francisco e Clara afirma a natureza não privada dos bens, a obrigação da sua disponibilidade para todos, a distribuição equitativa dos resultados. Não se trata, como muitos dizem, de uma afirmação pela estatização da vida social e económica, até porque nega os totalitarismos, mas da necessidade de uma intervenção do tal ente chamado Estado, em ligação com as diferentes manifestações da sociedade, para a construção de uma sociedade justa.
O desenvolvimento integral (2). Também a partir da Fratelli tutti, em ligação a Caritas in Veritate de Bento XVI, se desenvolve o cuidado da criação, toda a criação com a sua beleza e diversidade. O papel do homem na sua relação com os outros animais ganha aqui uma bondade crescente, a natureza que os acolhe constitui uma exigência filosófica e política de cada uma das sociedades. Mas é também aqui que encaixam as repulsas pelas leituras coloniais, fundadas em passados de imposições ocidentais, e a obrigatória aceitação do direito dos povos a seguirem o seu caminho.
A dignidade que leve à ecologia integral (3). Todas as exteriorizações programáticas de Francisco Papa, assentes nos princípios de Francisco Santo, refletem os equilíbrios, a fortificação da relação entre seres, a valorização do respeito pelo diferente numa obrigação de dar espaço para que os elementos vivos continuem vivos. Mas não é nova esta abordagem. Bento XVI tinha iniciado o caminho com a publicação de “Dez mandamentos para o Meio Ambiente”, reforçou na sua mensagem do Dia Mundial da Paz em 2010 a que deu o título “Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação” e consolidou em 2012 em “O meio Ambiente”.
O combate à economia de poucos (4). A partir de Evangelli Gaudium, Francisco Papa vai mais longe do que João Paulo II. O papa polaco, marcado como estava pela vida e pelo tempo, dizia que havia mais formas de realizar a economia do que o capitalismo. Francisco não nega a economia social de mercado, mas lidera a luta contra o capitalismo sem alma que faz do Homem um escravo, que cria centenas de milhão de pobres quando a tecnologia e os recursos financeiros existentes teriam condições para eliminar essa pobreza.
A economia ao serviço da vida (5). É aqui que entra a palavra Todos que ainda está nos nossos ouvidos desde a JMJ de Lisboa. O mundo diverso é o mundo acolhido, sem preconceito, sem acusação, sem medos. É o mundo onde não há cores, estratos, classes, maiorias e minorias, opressores e oprimidos, o mundo em que homens e mulheres assumem o seu papel de responsabilidade igualitária contribuindo com a sua realidade genética. É o mundo da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, é o mundo da justiça cega e da comunicação social assente na verdade e na não condenação. É a referência inserta no “Pacto para a Economia entre o Papa Francisco e Jovens” onde se diz: “Uma economia onde o cuidado substitui a rejeição e a indiferença; uma economia que não deixa ninguém para trás, a fim de construir uma sociedade na qual as pedras rejeitadas pela mentalidade dominante se tornem pedras angulares”.
As periferias como ponto e partida (6). É aqui que se afirma a revolução cristã dos marginalizados. Não a substituição de uma ditadura política por uma ditadura económica, sim a construção de uma vivência comunitária de partilha. As generalizações da mensagem, o cuidado de cada realidade com as suas vivências e caminhos próprios, a aceitação e vida com estádios de desenvolvimento diferenciados, não podem ser opção nem motivo para imposições civilizacionais, mas devem ser a melhor observação do mundo de diferentes.
A educação e a cultura como base (8). O conhecimento do nosso eu local, a garantia da razão de sabermos de onde partimos, a desgraduação da enormização e elitização da História, a construção de modelos universais de educação que permitam a partilha de vidas boas e más, fúteis e profundas, a construção de planos de conhecimento que não partam das estatísticas que medem o que é diferente com a inanidade dos números. A cultura onde todos cabem, onde a inteligência recusa o absurdo e a comunicação respalda ao impedir os extremos.
A nossa casa como espaço de acolhimento (9). A negação do acessos aos bens dos que não têm rosto, a negação de consumo de produtos que resultem de ciclos longos, a valorização do papel da criação e a contemplação da terra/jardim, o despojamento que impede a acumulação, o combate ao plástico enquanto praga do século. O reganhar da vida do Homem com os animais, uma visão da realidade do outro que não seja beneficiadora do turismo massificado que transforma as cidades em parques zoológicos.
Este decálogo, que resulta do meu estudo sobre Francisco Papa, talvez implique com a visão de ilustres académicos (César das Neves, Luís Cabral … ). Para estes Francisco estaria a fazer nascer uma espécie de capitalismo ético, mas isso é completamente falso.
Um Papa que vem dos bairros pobres da Argentina, que é neto de emigrantes, que viveu o lastro do colonialismo, que sabe o que o capitalismo fez de exploração dos países em desenvolvimento, não constrói uma nova leitura da economia a partir de velhos conceitos. É por isso que a Economia de Francisco vai ter, como no passado também teve a Rerum Novarum, muitas interpretações e muitas oposições.
Por agora, Francisco abre a porta com um pé de cabra, entra de rompante e obriga a que os que estão na sala o ouçam com frases simples de inconformismo que ecoam por todos os cantos do mundo. Mesmo não sendo de sua autoria, esta é uma delas: “O único momento em que é lícito olhar alguém de cima para baixo é para ajudar o outro a levantar-se.”
Ascenso Simões
(Foto DR