A democracia é do povo

Quando se pedia bom-senso, defesa do espírito de Abril e se apelava à criatividade, respondeu-se com argumentos de autoridade e decidiu-se que tinha de ser assim, porque os democratas-que-são-mais-democratas-que-os-outros decidiram que assim tinha de ser, porque sim.

Texto Norberto Pires Fotografia Direitos Reservados (DR)

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  • 22:44 | Sexta-feira, 24 de Abril de 2020
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A discussão a propósito da comemoração do 25 de Abril de 2020 foi considerada por muita gente como uma discussão sem sentido, e até infeliz. Eu considerei-a muito útil, pois permitiu verificar, mais uma vez, o elevado nível de hipocrisia que se vive na sociedade portuguesa. Um país que fez uma revolução memorável a 25 de Abril de 1974, apesar de ter sido subvertida umas horas mais tarde, ao ponto de quase ter conduzido a um Estado comunista – situação que só se normalizou a 25 de novembro -, continua a não lidar bem com a opinião de pessoas livres. O debate sobre a sessão comemorativa do 25 de Abril é um tema recorrente. Paradas militares, longas e aborrecidas sessões na Assembleia da República, com discursos de políticos a falar para si próprios, fazendo de conta que estão a celebrar com o povo, etc., são algumas das razões que têm sido várias vezes apontadas para explicar o desinteresse dos jovens por este evento que lhes permitiu nascer e viver num espaço de democracia e liberdade. Consequentemente, na retórica política e nos discursos de circunstância, as “reflexões” sobre a necessidade de renovar o “espírito de Abril”, fazendo com que a revolução se mantenha viva, passou a ser uma regra de bem discursar em qualquer lugar e para qualquer público. No entanto, em 2020, no meio de um período de pandemia e em Estado de Emergência, essa ideia de fazer alterações, que até se justificavam pela situação vivida, passou, subitamente, a ser um crime de lesa pátria. O Presidente da Assembleia da República tratou logo de declarar, pelo meio de várias intervenções muito infelizes, que não contassem com ele para alterar este modelo de comemoração do 25 de Abril. O debate atingiu então um inacreditável nível de hipocrisia, em que se dividiu a sociedade portuguesa em três tipos de pessoas: os democratas-que-são-mais-democratas-que-os-outros (DMDO), os fascistas (F) e os idiotas úteis (IU). E como é que se chegou aqui? Tudo começou com um pequeno vírus, denominado COVID-19. Apareceu na China e logo os políticos portugueses, que tinham passado anos a inventar um sucesso, desinvestindo em tudo o que era essencial, cativando tudo o que era possível e impossível de cativar e fazendo de conta que estavam a resolver os problemas do país, construindo, ao invés, uma situação explosiva mascarada de país preparado, declararam que o vírus nunca chegaria cá. Quando ficou evidente que chegava, declararam que estávamos preparados. Quando ficou evidente que não estávamos, declararam que ninguém podia estar preparado. Quando ficou evidente que não era bem assim, declararam que estávamos a fazer o possível. Quando se tornou evidente que se atuou com atraso, declararam o Estado de Emergência. Com isso vieram leis restritivas que, no essencial, exigiam que as pessoas, na medida do possível, ficassem em casa, adotando métodos de teletrabalho, e se definiam regras para a movimentação de pessoas, obrigações para os grupos de risco e exigências para as pessoas que necessitavam de proteção especial (por exemplo, as pessoas com mais de 70 anos, por serem especialmente vulneráveis ao vírus). Com várias falhas, com uma enorme confusão nos números de infetados, como uma desorganização que impediu que muita gente fosse testada e, no essencial, faltassem meios básicos, incluindo de proteção individual aos profissionais de saúde, o Estado de Emergência foi renovado duas vezes. Nesse processo:

1) Limitaram-se muito os rituais dos funerais, até por razões sanitárias. Mas não deixaram de se fazer, sofrendo antes transformações radicais para cumprir as regras do Estado de Emergência;

2) Limitaram-se muito todas as celebrações, incluindo a milenar Páscoa, até por razões sanitárias (tentando reduzir a deslocação de pessoas). Mas não deixou de se celebrar, sofrendo somente, este ano, alterações radicais para cumprir as regras do Estado de Emergência;


3) Reduziu-se a atividade laboral, até por razões sanitárias. Mas as empresas não deixaram de funcionar, só se organizaram para cumprir as regras do Estado de Emergência;

4) Todas as celebrações foram fortemente limitadas. Mas não deixaram de se fazer. Por exemplo, as missas religiosas, tão importantes para a vida de muitos portugueses, adaptaram-se para cumprir regras, sendo transmitidas pela TV ou pela Web.

5) A Assembleia da República também se adaptou. Tinha de continuar a funcionar, mas, para cumprir as regras do Estado de Emergência, reorganizou-se para reunir em sessões regulares com 1/5 dos deputados.

No entanto, para a sua celebração mais importante e significativa, a AR decidiu FURAR as regras e reunir com mais gente do que nas sessões regulares, com convidados exteriores, muitos dos quais são pessoas de risco e a quem o Estado deve proteção especial e que, por isso, deveriam ficar em casa, e sem acautelar a necessidade de dar o exemplo no cumprimento de regras. A Casa da Democracia tem muito mais obrigações do que as outras Casas em que os Portugueses se reúnem ou vivem, nomeadamente de dar exemplo. Para além disso, ao convidar pessoas de grupos de risco, a quem estão reservadas obrigações de proteção especial, incorreu num eventual ilícito criminal que a Procuradoria Geral da República e a Provedora de Justiça deveriam prestar atenção. Pelo meio, quem apontou a insensatez foi imediatamente insultado como “fascista, “rato” e “inimigo do 25 de Abril”. Como isso era uma ideia absurda, depressa esses democratas, que são mais democratas que os outros e se autointitulam defensores do legado do 25 de Abril, mudaram o insulto de “fascistas” para “idiotas úteis”, isto é, pessoas que até são democratas, mas são tontas, ou patetas, e foram envolvidos numa tentativa populista de ataque ao 25 de Abril. Esses “democratas” são os mesmas que aceitam que se coloquem várias dezenas de pessoas numa sala fechada, sem máscaras e com maiores de 70 anos, mas chamam a polícia quando vêem pessoas jovens a andar numa marginal (espaço aberto), cumprindo as regras de distanciamento social e apanhando sol (que tem uma componente que mata o vírus em poucos minutos: os raios ultravioleta). De um momento para o outro, num enorme pico de hipocrisia, aquilo que antes tinha de ser modificado, porque era aborrecido e ineficaz, passou a ser imutável. A Casa da Democracia, que várias vezes tinha sido desmerecida, por exemplo por Mário Soares (1993) que, em protesto contra Pacheco Pereira, decide transferir a cerimónia para o Palácio de Belém; ou em 2014, quando a Associação 25 de Abril decidiu promover, à mesma hora da cerimónia da AR, outras celebrações (no Largo do Carmo) onde estiveram muitos daqueles que agora assinaram petições a jurar amor eterno à aborrecida – e a precisar urgentemente de reforma – cerimónia da AR.

Ou seja, quando se pedia bom-senso, defesa do espírito de Abril e se apelava à criatividade, respondeu-se com argumentos de autoridade e decidiu-se que tinha de ser assim, porque os democratas-que-são-mais-democratas-que-os-outros decidiram que assim tinha de ser, porque sim. Na verdade, tudo isto foi muito útil, pois alertou para a hipocrisia em que vivemos e demonstrou como o espírito de Abril precisa de ser renovado.

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Publicado em Opinião