A criação de um novo futuro na psicoterapia e na psicanálise é um dos resultados imanentes da relação psicoterapêutica bem-sucedida. Um futuro que não repete o passado, que não assenta o seu projeto na cópia do anteriormente já experienciado e já conhecido, mas que resulta da expansão do novo ser, aquele que nasceu da nova relação: a relação psicoterapêutica ou psicanalítica. A construção do novo futuro afirma-se no presente da relação analítica e com ela ensaia os primeiros passos, tímidos no início, ousados e livres no final do processo de cura ou, mesmo, após este ter terminado. Nesta comunicação apresentar-se-á uma vinheta clínica exemplificativa deste processo.
O paciente procura a psicanálise ou a psicoterapia para se tratar da monótona patologia, inibidora da expansão do seu horizonte e das suas realizações. A queixa encerra o pedido de ajuda para a transformação do quotidiano que reflete o fracasso das experiências relacionais do passado. Contudo, vários fatores são adversos à realização deste desiderato: por um lado, o paciente desconhece a dinâmica e a força da compulsão à repetição implicadas no seu sofrimento (Freud: 1914, 1920); por outro, é inábil no reconhecimento das melhoras que vai alcançando no processo, as quais constituem uma força propulsora para a saída da crise e para a construção do futuro; e, por outro, ainda, é acanhado no que respeita a desejar, a sonhar, um futuro novo, pois, para tal, precisa de um ego inato, inteiro e forte que ainda não possui. Será a relação com o analista que constituirá o fator de apoio, de transformação dinâmica que catapultará a nova criatura para o futuro diferente.
Assim sendo, é no triplo eixo – o do estudo do passado, o da libertação do potencial psíquico do sujeito no momento presente e o da sua projeção no futuro novo – que se vai centrar o processo de cura.
Trata-se, em primeiro lugar, de desembaraçar o paciente do peso do passado e dos seus efeitos iatrogénicos no presente, através da interpretação da transferência e da contratransferência; em segundo lugar, de sinalizar, não só o percurso do processo terapêutico, o qual se inicia logo no primeiro encontro, como também de sinalizar os desenvolvimentos nele conseguidos através da atenção à nova relação e à sua função criadora do novo ser e do seu novo futuro; e, em terceiro lugar, de apoiar, concertar e unificar o ego frágil, deformado ou clivado, através da nova relação, a qual é provedora daquelas funções parentais que fracassaram no passado para com o sujeito. Procedendo deste modo, partilham-se no percurso, ora os insucessos – alvos de escalpelizado estudo para não serem repetidos – ora os incipientes progressos, os quais, progressivamente, se transformam em significativas mudanças. Assim analisando, fortalece-se a aliança terapêutica e reforça-se o entusiasmo e a motivação para a cura: o paciente começa a p
oder querer, a desejar e a fazer diferente.
Em traços gerais, não é só a dinâmica da repetição da transferência, encarada como o sofrimento transferido do passado vivido enquanto força do presente como «um fragmento da vida real» (Freud: 1914, pag.167; Klein: 1952; O’Shaughnessy: 2013), aquela que acontece na relação terapêutica. Há a considerar a força da relação nova que se estabelece, a nova relação, e o seu poder curativo desenvolvido na obra de António Coimbra de Matos. Da dinâmica da interseção das duas para o tema da construção de um novo futuro, oferece-nos apontar algumas considerações.
No que respeita à patologia implicada no processo de cura, no caso do paciente mais neurótico, a linha de tratamento orienta-se no sentido da repetição na transferência para o elaborar, o recordar, o repetir e de novo para o elaborar, para, progressivamente, o fazer diferente, através do empoderamento das capacidades outrora inibidas (Matos: 2016a) e da expansão da nova relação para a vida do paciente.
No caso do paciente mais traumatizado, borderline ou psicótico, o processo é diferente. Este último centra-se mais na ab-reação, no repetir pelo enactment, pela atuação, pela identificação projetiva e pela capacidade de análise do terapeuta da sua contratransferência. Consequentemente, a linha de tratamento é aqui orientada no sentido, não só do reviver partilhado na transferência-contratransferência, e do recordar e elaborar o passado, como também do completar, pela primeira vez na nova relação, dos espaços vazios e deformados do self ou do objeto, verdadeiros buracos existenciais: a relação terapêutica constitui-se como o vaso dos ensaios existenciais inaugurais do sujeito (Matos: 2017c).
Estas experiências estreantes, não só de estados de relações, de estados do self e dos seus objetos, como de novas aptidões, são expandidas para as relações extra terapêuticas, constituindo este salto o passo do transfert da nova relação (Matos: 2017b). É neste movimento de ensaio na vida real que se cimenta o processo de empoderamento das novas capacidades, as quais o paciente não possuía anteriormente ou que estavam danificadas ou diminuídas. Mais capaz, mais relacional e mais livre, o novo sujeito escreve o seu futuro, imprimindo-lhe as marcas das novas aquisições, indo muito além do que, outrora, poderia ter augurado.
Retomando a transferência patológica, no paciente mais neurótico esta é mais visível ao terapeuta, pois processa-se por transformação em movimento rígido (Bion: 1965). Quer isto dizer que as relações transferidas na relação terapêutica são representantes das relações de objeto interno, sendo a sua interpretação relativamente bem tolerada pelo efeito libertador obtido. A interpretação percorre o eixo da reconstrução ontogenética do passado do paciente, a memória é resgatada ao recalcamento, e a elaboração temporal é acessível. Bem compreendido o passado, o futuro destaca-se no horizonte enquanto projeto a realizar: o paciente está bem alicerçado na relação e no trabalho analíticos, os quais libertaram o seu presente da ansiedade que ensombrava ou inibia o ego. Implícita está a conquista da nova potência do ego para alcançar o objeto e o objetivo, tal como preconizou Freud acerca da capacidade de desejo de um aparato psíquico capaz de pensar e de desejar obter satisfação real, mais do que a alucinatória, agindo
sobre a realidade, modificando-a, de modo a obter o prazer (Freud: 1911).
No paciente não neurótico, a interpretação da transferência é mais difícil, menos acessível ao terapeuta, pois processa-se por transformação projetiva (Bion: 1957, 1965), ou seja, por projeção de partes cindidas do objeto e, ou, do self do paciente (Klein: 1946). São estas parcelas do self as quais, ao explodirem dentro da relação com o analista e, ou, dentro da mente do paciente (Rachel Blass: 2017), têm como consequência a impossibilidade de elaboração temporal: sem um ego inteiro não há verdadeiro acesso à temporalidade (Wolheim: 1984; Rey: 1994; Civitarese: 2019) e, bem assim, a um futuro. A reconstrução do passado e a aprendizagem das suas lições não são ainda possíveis e o futuro, bem como o passado, implodem sobre o presente.
Por conseguinte, e tomando os dois aspetos da dinâmica terapêutica, o transfero-contratransferencial e o da nova relação, o analista, fundido com aquelas partes do paciente constituirá um novo contentor que compreenderá, a um tempo, quer a fraqueza do ego do paciente, quer as circunstâncias originais da falha das funções materna e paterna que lhe deram origem, quer, ainda, as novas condições da nova parentalidade, representadas pela novas qualidades do objeto, o analista, as quais compreendem as suas capacidades significadora, contentora, reflexiva e facilitadora do desenvolvimento, entre outras.
Da possibilidade de distinção destes três intervenientes no cenário da relação analítica, com as suas tramas e afetos – refiro a parte infantil, o meio ambiente, e as novas condições – dependerá o sucesso do processo e a escrita de um futuro diferente.
O paciente mais simbólico torna-se facilmente um aliado na investigação temporal, já que pressente que esta o liberta para o futuro novo ansiado. No entanto, o paciente menos capaz da mentalização não compreende o afã interpretativo que remete ao passado, sentindo-o como um desperdício de tempo, quando não um tique ou um ataque do terapeuta. Mais sedento da relação real, sobre a qual ensaia o apoio que o poderá levar a novos horizontes, precisa, primeiro, de se desembaraçar de toda a técnica que não escuta as suas necessidades, entre as quais a primeira de todas é passar à ação com urgência, agindo, vivendo a vida de modo diferente. Já outro é o caso do paciente mais neurótico, o qual sendo menos dependente da relação real com o terapeuta e menos pressionado para a vivência imediata, possui uma angústia mais tolerável e suporta melhor a frustração e o adiamento da satisfação. Este paciente mais simbólico aceita a técnica psicanalítica, conseguindo dela abstrair a relação real com o terapeuta.
Todavia, em ambos os casos, o futuro constrói-se pela experimentação assistida da prova de novas soluções e também pela ousadia, a qual foi primeiramente ensaiada e sustentada na nova relação. Em ambos os casos há uma força atuante, um poder que incide neste aspeto da relação, o qual não se centra sobre o paradigma da transferência-contratransferência, mas sim sobre o paradigma da criação do novo ser, o qual emerge do encontro com as novas condições propiciadoras do seu desenvolvimento (Coimbra de Matos: 2011, 2017, 1919): será este o fator que providenciará um novo futuro.
No caso do paciente mais neurótico, o seu futuro está a escrever-se com o terapeuta. Este funciona como copiloto, num papel de psicanálise assistida que sinaliza o caminho do desenvolvimento e o facilita. No caso do paciente mais traumatizado, borderline ou psicótico, o terapeuta assume o papel de cuidador, numa relação de maternagem, tal como a descreveu Winnicott (1960, 1965), a qual decorre em total envolvimento e responsabilidade, em busca de um novo começo, de um ponto de partida a partir do qual se firma o primeiro momento do novo devir.
Aqui a área afetada pertence ao inconsciente primitivo ou primal (Freud: 1915, 1926). Freud associou este tipo de inconsciente a vivências traumáticas originárias, ou seja, a traços que não tiveram acesso a uma representação devido à prematuridade e à precocidade da experiência. Bollas reportou estes aspetos àquilo a que chamou o unthought known, o saber não pensado (Bollas: 1991) que aguarda o encontro com o objeto de rêverie, ou seja, o novo objeto, de modo a poder tolerar, simbolizar, pensar e inscrever esse tipo de inconsciente no eixo da temporalidade libertadora. Enquanto tal não acontece, o futuro é ameaçador, pois representa uma parte das experiências temidas resultantes da relação esquizo-paranoide com partes dos objetos parciais e do self projetadas sobre a relação e o espaço-tempo deformados.
Deste modo, o futuro pode representar o lugar de despejo daquelas experiências traumáticas, quiçá pré-verbais ou simplesmente não memorizadas, pertencentes ao inconsciente não reprimido, facto que pode conduzir o paciente à enação crónica representada em gestos psíquicos e em padrões de relação registados através de formas pictográficas, uma vez que tais vivências só podem emergir na relação através da encenação (Sapisochin: 2012, 2013, 2019). É pela nova relação de atuação da devoção maternal, quase masoquista (Cassorla: 2013), ou de atenção incondicional do terapeuta (Coimbra de Matos: 2011, 2016) que este trabalha com o seu paciente na construção de uma rede simbólica que possa vir a conter a reatuação do trauma ainda não simbolizado em enactment agudo que permita o sonho e a recordação, e, a seguir, a ressignificação em après-coup.
A senhora M. terminara uma psicanálise a três sessões semanais há cerca de quinze anos, quando me procurou pela segunda vez. A análise deixara-lhe uma forte confiança no que dela poderia obter: durante o processo, e após ele, a sua vida transformara-se em pleno, quer no que respeitava à sua alegria, vontade de viver, a afirmação de si e no novo estilo relacional, aberto, amistoso e bem humorado, quer quanto ao ter dado início a uma atividade partidária participativa e de responsabilidade, em tudo contrastante com o cinzentismo e o anonimato que haviam perdurado na sua vida até à psicanálise. Eram aqueles alguns dos aspetos atingidos, os quais ela valorizava por terem sido impensáveis de alcançar no futuro de uma pessoa que se reconhecia, olhando o passado, como atormentada pela depressão e pela inibição, pela culpa incutida por uma educação religiosa castradora, por um sentimento perene de inferioridade e por lutos suspensos. No passado a paciente apresentara um registo projetivo, suspeitoso, esquizo-paranoi
de difícil de tratar pela violência que implicava na relação, exigindo da terapeuta uma adaptação e uma sensibilidade permanentes. Poderíamos dizer que o trabalho de integração do seu ego, com a libertação da raiva associada à revivescência de situações de falha do meio parental, processara-se rumo à ambivalência, à tolerância e ao concern.
Durante os anos de interregno sentira-se sempre acompanhada pela relação analítica, a qual estava bem internalizada, sabendo não só que tinha conquistado muitos instrumentos novos para viver, como também sabia que poderia contar sempre com a nossa relação. Enfrentara a morte da mãe, da tia que a criara, do companheiro amado e um cancro que estava curado, o qual, por pouco, não a matara. Agora, perto dos oitenta anos, sentia que as garras da depressão ameaçavam derrubá-la. Não tinha vontade de sair de casa, incompatibilizara-se com amigos e colegas, isolava-se e, progressivamente, tudo lhe metia medo: esperava a todo o momento que algo de profundamente mau acontecesse. As sessões decorriam com inquietação e verdadeira desesperança. Antes de fazer alguma coisa, pensava que já não valia a pena, sentia-se velha pela primeira vez na vida desde que se tratara. – Não sabia eu que o homem não consegue pensar a sua morte? – Questionava-me, em jeito de afirmação, esperando alcançar de mim a confirmação da eternidade pr
ometida na qual também já não acreditava. O tema recordou-me uma sua muito antiga angústia: – Pois não tinha um bruxo vaticinado o ano da sua morte?
A senhora M. olhou-me expressivamente.
– Penso nisso a toda a hora! – exclamou.
– E a hora dele, ele também adivinhou? – perguntei-lhe, com alguma ironia.
– Comigo acertou em tudo – disse, convicta.
– E já falta pouco, não?
Fez um sorriso amarelo:
– Tal e qual – respondeu.
– A olhar para a cova, é que não se consegue viver. Ainda cai lá dentro! Não sabia que o nosso futuro é viver?
– Ah, pois, da nossa morte nunca saberemos, é isso?
– Não é bem. Se temos menos tempo de vida, mas algum ainda, o melhor é aproveitarmos porque estamos vivos. O que me preocupa é que não está a viver.
– Pois lá isso, não.
Aos pouco instalaram-se tréguas na ansiedade da Senhora M. Algum humor, que já havia sido perdido, foi retomado. No entanto, o vaticínio do bruxo ensombrava o espaço e a construção de um novo futuro. Este, outrora alcançado na primeira análise, não parecia ser exequível no segundo encontro terapêutico. Eu própria começara a dar-me conta do uso que ela de mim fazia: empurrava-me para uma tagarelice animada, a qual vinha sentindo destinar-se a afastar pesadelos: projetivamente ela colocava-me num lugar de impotência perante a morte, tal como ela também se via.
E no que se referia aos sonhos? Não os tinha, nem sob a forma de projeto nem sob a forma onírica. Desde que retomara a terapia não conseguia sonhar, pois tomava benzodiazepinas de duas em duas horas, um antidepressivo de manhã e outro à noite, de modo a poder suportar a ansiedade. Não obstante, paulatinamente, algumas melhoras iam ocorrendo no seu quotidiano: a paciente começava a manifestar interesse em lutar por um lugar partidário que deixara vago por ressentimento, a retomar relações de amizade que alijara e a ter vontade de estar com a família que amava.
Ao longo das sessões fui tomando consciência de como a igualização perante a morte havia-nos conduzido para uma encenação, ora de uma mãe impotente a explicar a morte de alguém a uma filha ora me colocava num lugar de igualdade fraterna. Tais associações livres, baseadas, quer na atenção flutuante, empática e incondicional, quer na contratransferência, conduziram-me, num determinado momento, a poder formular a hipótese de que o medo que M. colocava no futuro, reportava-se na verdade a um momento trágico que já havia ocorrido no passado. O paradigma associado a este medo havia sido o da morte inesperada do pai na sua infância. Esta dolorosa ocorrência deixara-a, bem como ao resto da família, em circunstâncias difíceis de sobrevivência e obrigara, não só à divisão da fratria pelos restantes familiares, mas também ao abandono do seu país natal. Recentemente, e devido a tantas circunstâncias dolorosas vividas e a tantas perdas pelas quais havia passado, reinstalara-se a memória do trauma: desta vez projetado sobr
e o futuro como um espectro negro aterrorizador.
Nas semanas seguintes M. vai confessar-me ter retomado a capacidade de sonhar, embora esses sonhos voltassem a ter o mesmo caráter traumático de que sempre se haviam revestido: voltara a sonhar que estava dentro de um barco, ou a caminho de um, e de não conseguir, ou sair dele, ou preparar-se para o não perder.
Estes sonhos repetem-se, ao mesmo tempo que vive na nova relação um reacender da esperança na sua vida. O desamparo, a separação e a morte são agora representados e já não encenados. Recorda a vinda para Portugal, em criança, num vapor em condições infra-humanas. Na vida de relação extra terapêutica preocupa-se de novo em trabalhar ativamente nas causas partidárias da sua vida, em ganhar a voz que nunca conquistara, mas que já tinha dado por perdida. Esboçam-se novos planos de futuro. Num destes dias descreve-me um sonho que em tudo se aparenta com aqueles dos barcos que partem sem ela estar preparada; porém, verifico uma diferença: ela tem de desembarcar; no seu camarote as malas estão cheias de coisas por arrumar; angustia-se um pouco porque tem tantas coisas para arrumar e já é hora de sair. Sabe, no entanto, que pode pedir ajuda e que pode desembarcar com quase tudo o que levara na viagem. O sentimento é, desta vez, reconfortante. A senhora M. sente o seu self cheio de experiências da vida, as quais pode
agora começar a reunir: abandonar o barco, ou terminar a viagem, não tem de ser necessariamente a morte. O que mais importa agora é que conta com a nova relação que tem comigo; uma nova relação que a acompanha e que lhe permite a completude narcísica, a expansão afetiva e a construção de um legado cultural, única forma de vencer a angústia perante a sua finitude.