A bicicleta, o progresso e a natureza

A «fealdade nova» das bicicletas, em 1900, converteu-se na «nova beleza» de 2020. Tudo se aceita na bicicleta, gâmbias magras e «velhos gordos», «galfarros» e mulheres. O prazer da bicicleta deixou de ser equívoco. As mulheres já não vão «escarranchadas». Ganharam o direito a uma elegância nova.

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  • 17:26 | Terça-feira, 17 de Agosto de 2021
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A subida da serra da Estrela realizou-se em comunhão com a natureza. A bicicleta preserva o silêncio e a humanidade. Porque havia de representar a mecanização, a descompostura e os vícios da cidade? E, contudo, foi isso que Zé Fernandes pensou na derradeira viagem a Paris. Zé Fernandes regressou a Paris para odiar nela o progresso extremo, a imoralidade, a multidão, a superficialidade e a falta de sentido. Detestou a «torrente dos ónibus, calhambeques, carroças, parelhas de luxo». Mas foi nos Campos Elísios que viu uma desagradável turba de ciclistas.

«Em toda a sua nobre e formosa largueza, toda verde, com os castanheiros em flor,» lembra Zé Fernandes, «corriam, subindo, descendo, velocípedes. Parei a contemplar aquela fealdade nova, estes inumeráveis espinhaços arqueados, e gâmbias magras, pedalando escarranchados sobre duas rodas. Velhos gordos, de cachaço escarlate, pedalavam, gordamente. Galfarros esguios, de gâmbias finas, fugiam numa linha esfuziada. E as mulheres, muito pintadas, de bolero curto, calções bufantes, giravam, mais rapidamente, no prazer equívoco da carreira, escarranchadas em hastes de ferro. E a cada instante outras medonhas máquinas passavam, vitórias e faetontes a vapor, com uma complicação de tubos e caldeiras, torneiras e chaminés, rolando numa trepidação estridente, espalhando um grosso fedor de petróleo.»

Sucede, porém, que subi recentemente o chamado caminho de Jacinto, que reconstitui o trajecto entre a estação de Arêgos e a quinta de Tormes. Pude comprovar que melhor se faria num cavalo ou num burro do que de bicicleta. Ou não: certas inclinações extremas são, nos nossos tempos, um impedimento ao esforço animal, assim como desaconselhavam, na época de Eça de Queirós, o cansaço dos humanos. Em 1900, não se sabia que aquela máquina cara e recente se tornaria barata e próxima da natureza, mesmo da serrana. Era cedo para isso. Depois de Eça de Queirós, vieram ainda os cubistas e outros modernos, amantes do progresso, crentes do futuro, ansiosos de velocidade, que exaltaram um avião nos céus, o automóvel nas estradas e as bicicletas como um repente veloz de individualidade.

Jacinto e Zé Fernandes chegaram a detestar a máquina e o futuro que elas traziam, e por isso estranharam a bicicleta. Vieram os modernos, e amaram, na bicicleta, a força, a pressa e a revolução. Chegaram, enfim, os ecologistas, que incorporaram a bicicleta na natureza e querem, com ela, moderar os malefícios da cidade.


A «fealdade nova» das bicicletas, em 1900, converteu-se na «nova beleza» de 2020. Tudo se aceita na bicicleta, gâmbias magras e «velhos gordos», «galfarros» e mulheres. O prazer da bicicleta deixou de ser equívoco. As mulheres já não vão «escarranchadas». Ganharam o direito a uma elegância nova.

Os automóveis, esses, coitados, é que caíram em desgraça. O «fedor de petróleo» equivale ao fim dos tempos.

 

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Publicado em Opinião