Já chega de falar do Chega, mas a verdade é que os rapazes não deixam, encharcam-se de suspeições, não permitem que a poeira assente, cada dia levanta-se uma nuvem, cresce uma dúvida, medram as denúncias, há quem se queixe, quem aponte o dedo, quem jurando verdades e ajuntando testemunhas, não baixe a guarda.
Está escrito nos livros que os que mais falam e arengam são os que mais têm que se lhe diga. E que os decibéis da vozearia se alteiam na proporção directa dos telhados de vidro dos seus autores. Quanto mais frágeis no seu currículo mais alto gritam, tentando com a berraria abafar os pecados pessoais e esconder os erros próprios.
Na passada semana, atingiu-se o limite, pisou-se a linha vermelha, traçou-se um risco que separa o decente do ordinário, tocou-se o grau zero da decência. O busto da República envergonhou-se com a algaraviada dos fanfarrões, uns com cara de monos, outros com “fácies” de ferro-velho. A bancada mais à direita foi vazadouro de despejos, dejectos e imundícies. Acontecesse no lar de cada um e o insulto ficaria confinado às paredes que acolhem aqueles sub-produtos sociais. Mas foi no Parlamento de um país que se orgulha de ser democrático, nas barbas dos navegadores e dos nossos egrégios avós.
Brincar com a deficiência é descabido, aviltá-la é indigno, desprezá-la é surreal e patético. Só ao mais básico australopiteco, sem aprendizagem social e cultural, calhava menos mal tanta idiotice. A deficiência não é impedimento, é característica, não é estigma, é diferença, não é diminutiva, é condição.
Quando, com os microfones desligados, ainda assim a ofensa gratuita ecoou, a bancada dos achegados parecia o recreio de uma escola inserida num território educativo de intervenção prioritária, tal o escarcéu que a turma levantou.
O ar de gozo e o sorriso cínico visíveis em algumas caras não condizem com a civilização e a sanidade mental. Escutar esta gente que nos entra pela casa adentro sem pedir licença, é um vazio interminável, é cal que queima, óleo que frita. Os mestres da ofensa e do insulto fizeram disparar os alarmes da consciência limpa, levaram o Parlamento a bater no fundo.
Há muito que o grupo se excede no tom, no conteúdo, na agressividade, na intolerância, no ódio. Sempre irados, excitados, ligados à corrente e às baterias, prometem limpezas, anunciam purificações, destilam veneno e realizam-se com o sangue derramado. Içam bandeiras e rufam os tambores sempre que as minorias são barradas. Em ânsias, e sem langores, espadeiram em tudo o que mexe e parece estranho aos seus critérios oblíquos. Agitam quimeras, alimentam-se de intrigas. Arrogantes, reduzem o mundo à ideologia que apregoam e ao que, da torre sineira, a sua vista alcança. Engalfinhados como garnisés, resfolegam e masturbam-se com niquices e ninharias. Os discursos saem da boca ao ritmo das metralhadoras. Num tropel desaustinado, disparam fúrias e gesticulam ameaças. Atropelam-se com moções de censura e pedidos de demissão, tantos são os que colocam e reclamam, vulgarizando o que devia ser criterioso. Elevam as questões da pele e do género ao estatuto de assunto nacional, que o Estado autoritário deve rejeitar… e expulsar. Tratam a deficiência com a indiferença dos tolos e a sobranceria dos vaidosos. Numa afogação de teatro, os homúnculos protestam, barulham, encanzinam, atropelam. Enraivados, os homens das cavernas omitem falhas, fazem barrelas dos podres que se apressam a enterrar no cemitério das cabeças de gado. Com brutezas refinadas, barafustam, bulham, praguejam, atacam, flagelam-se, vitimizam-se. Não têm tino, são uns estouvados. Sempre ressabiados, azedos e zangados. Instalados nas certezas dos néscios, tudo julgam, pouco recomendam, nada consertam. Julgando que tudo se apaga, carregando no “delete”, passam uma esponja sobre os embaraços e as desonras.
Desta vez, porém, o comportamento da turbamulta, sob o beneplácito e a outorga do venturoso “capo di tutti capi“, pulverizou o bom senso, dinamitou a urbanidade, insultou os sensatos. Soltou-se a alcateia e os lobos famintos despedaçaram princípios, tripudiaram o respeito, rasgaram a elegância.
Que se soltem, então, as feras, se digladiem na arena, enquanto o circo arde em labaredas, parece ser a sua bússola. Espanando essa posição dúbia, faz sentido que em urgências as vozes que se encontraram num unânime repúdio da barbárie se entendam depressa na aprovação de um código de conduta que balize comportamentos e puna os exageros que escarnecem do respeito e da boa convivência parlamentares.
O deboche, a chacota e a zoação não podem campear impunemente na casa da democracia, à sombra de uma liberdade, que, para ser defendida, não pode ser interpretada como um valor absoluto.
É urgente um cordão sanitário, que isole a cortelha e contenha tudo o de mau o curral gera.
Quantos ditadores não ascenderam ao poder, gozando das liberdades que mais tarde apunhalaram?
Aprendamos, então, com a História, mesmo que os Aguiares deste século insistam em branquear as tropelias e as traquinices dos “meninos” rabinos, mal-disfarçados de anjos e querubins.