Nasceu da barriga de uma mulher cujo dia-a-dia é preenchido pelo contexto de pobreza e privação. As cabeças, dela e do marido, estão ocupadas, todos os segundos do dia, na busca incessante pela sobrevivência. O que vamos almoçar? Há quanto tempo não comemos peixe? Precisamos de fruta e legumes, mas os preços são proibitivos. Este mês conseguimos pagar a renda? Já chegou a fatura da luz? Jantamos? Os pais, de ambos, agora avós, nasceram, cresceram e sobreviveram no contexto difícil do bairro social que aloja a mão de obra barata das fábricas e da construção civil. Terão tido uma ou outra experiência no estrangeiro, nas mesmas lides, sem contratos e alvos fácies da exploração laboral. A pobreza reproduz-se, é geracional e estrutural.
Nascer num bairro social não é uma sentença de morte, mas é um indicador de menor qualidade de vida e do exacerbar dos fatores de risco que contribuem para mais doenças e morte prematura. A mochila familiar, social e cultural influencia a integração na escola e na vida em sociedade que encontra barreiras na relação com a comunidade de origem. Apesar de todos os esforços (colossais), que a comunidade escolar faz, a luta é desigual e, em regra, condenada ao fracasso. A escola não cumpre o desiderato de elevador social. Não são dadas as melhores condições às mulheres e homens que persistem e insistem em ensinar. Conheço, pessoal e profissionalmente, a professora Rita que “Já é avó, mas vê-se obrigada a viver longe da família para poder trabalhar. Vive num quarto alugado na Amadora, a 300 quilómetros de casa, porque não tem dinheiro para outra opção.” (Expresso, 11/09/2023). Uma realidade dura que carateriza a vida de muitas professoras e professores. Não se lhes pode exigir que desempenhem diversos papeis e funções, com igual sucesso, no combate às desigualdades que começam ainda na barriga da mãe, se visibilizam durante o percurso escolar e terão consequências nas opções de vida, no futuro que teimará em não lhes sorrir.
Os rankings têm o seu interesse, mas são perniciosos. Chegar à escola no último modelo elétrico, de uma marca premium, não é a mesma coisa que acordar, de madrugada, numa casa fria (a pobreza energética é real em Portugal), talvez tomar o pequeno almoço e passar horas em transportes públicos sobrelotados. Claro que há casos de sucesso, as conhecidas exceções que dão bonitas histórias de vida e que poderão servir de motivação para que outros não desistam de crescer, aprender, sobreviver e vencer.
Vem esta contextualização na senda dos últimos discursos sobre a geração mais qualificada de sempre que emigra, engrossando a fuga de cérebros. Não questiono, é um dado objetivo, que estamos na presença da geração mais qualificada de sempre. O ensino obrigatório fixou-se no 12.º ano de escolaridade. As licenciaturas (a maioria) são de três anos, em cinco anos são “mestres” de alguma coisa. Quanto a serem a geração mais preparada, de sempre, para a vida, tenho muitas dúvidas e estas, se não forem apenas minhas, merecerão debate, sob pena de podermos estar a iludir e hipotecar toda uma geração que, segundo dizem os estudiosos, irá viver pior do que a dos seus progenitores. Algo que não faz sentido em tempos de inteligência artificial, mundo globalizado e aumento da esperança média de vida, fruto de melhores condições de saúde e sociais.
Multiplicam-se os discursos em defesa dos jovens qualificados. Muito bem! Quero viver num país que cria e proporciona oportunidades e retira o melhor daqueles que se formaram e têm muito para dar. Precisamos de vocês como do pão para a boca!
Os nómadas digitais são muito mais cool, agarrados ao último gadget e a prestar serviços para uma qualquer multinacional, numa geografia mais ou menos distante. Vir à terra, ao mundo real, recomenda-se, para que não se tomem decisões nos gabinetes, procurando responder à bolha mediática das tribos que ululam com a última startup, gazela ou unicórnio… Os comentadores do reino têm como referência o projeto de engenheiro aeroespacial que no 1º ano da faculdade já assinou um contrato com uma empresa alemã ou o médico que opta por uma carreira mais atrativa no norte da Europa. Esquecem-se de quem não teve possibilidades de aceder ao ensino superior, é jovem, sonha e quer fazer vida na sua terra. A aversão ao pobre, a aporofobia, é um desafio para a democracia e tem consequências sociais inegáveis, certamente evitáveis.
(Fotos DR)