Com o passar dos anos temos tendência a recriar episódios distantes da nossa tenra infância e a juntar-lhe – geralmente de modo não consciente – uma pitada ou outra de memórias que se vão acumulando das diversas sincronias das nossas vidas.
Talvez nessa perspectiva, recordo – ou julgo recordar, que importa isso hoje? – um dos primeiros presentes que o Pai Natal me deixou na árvore amorosamente “construída” por minha mãe, na sala de nossa casa…
Deitávamo-nos fervilhantes de inquietação, minha irmã e eu, e, depois de um sono agitado, pela madrugada, alvorotados, lá íamos ver o que cada sapatinho continha.
Ah, cada um tinha direito a um sapato, cada um dos filhos, que não os pais. Lá em casa eram só dois, o de minha irmã e o meu que, durante a tarde, tinha engraxado às escondidas e polido esmeradamente com o pano do pó, não fosse o Pai Natal desagradar-se dele e, enfadado, virar-lhe costas.
E lá estava poisadinho o embrulho, assim para o rectangular, num papel quase banal. Meu pai, entretanto erguido ao nosso torvelinho, segredou-me: __ “Abre com jeito…”, e eu, com todo o cuidado para não estragar o papel, desembrulhei e abri a caixa. Lá dentro um rutilante Fórmula I, que levantou dentro de mim uma onda de fogo mais encarnado que a cor do carro. Meu pai, de novo, quase num sussurro, disse: __ “É o Juan Manuel Fangio…” para concluir com devoção: — “Num Maserati 250 F…”.
O pai, escusado será dizê-lo, tinha a paixão dos automóveis e, claro, das corridas. Fangio, naqueles anos pontificava nas pistas de todos os continentes, atingindo o supremo recorde de 4 campeonatos do mundo. A Maserati era então, com a Alfa Romeo, a grande rival dos Ferrari…
Eu, a olhar o carrinho em latão, dentro da caixa, não me atrevia a tocar-lhe, mal o vendo, com os olhos turvados de lágrimas. Tanto, tanto, tanto desejara aquela prenda…
Hoje, mais de meio século volvido, o meu querido Maserati ali está, galhardo, espampanantemente decadente, com o front screen desaparecido, uma mossa ali outra além, os pneus calcinados pelos anos e o Fangio, atentíssimo, espetado na baquet, sem cinto de segurança, que isso eram “mariquices”, mas de mãos bem enclavinhadas no volante, hoje tornado manche de avião, por mor dalguma curva mais cerrada, traçada a vertiginosa velocidade, no corredor lá da nossa velha casa.
Estive presente numa pré-consoada e numa consoada para as partilhar com parte dos meus sobrinhos. Os pequenitos, num virote, abriam com frenesim as dezenas de embrulhos espampanantes. Pegavam na prenda e punham de lado, na pressa de abrir a seguinte, e a seguinte, e a seguinte.
Ao fim, cansados de tantos “desembrulhos”, “aterravam” no sono dos justos, talvez a sonhar com aquela prenda que, decerto por esquecimento, não tinham recebido.
Os tempos mudam os hábitos e também a disponibilidade financeira de alguns. Quantos nunca tiveram uma prenda, nesta sociedade hiperconsumista? Porém, eu estou certo de que, algures num qualquer canto do mundo, um menino, negro, amarelo ou branco, adoraria um Maserati 250 F em latão, com um Fangio esfíngico, de olhar na pista, vítreo e intemporal no seu plástico rígido…