“Em política, de boas intenções está o inferno cheio.” (Mário Soares)
Aquele homem não fala a nossa língua. Aquela que comummente partilhamos como símbolo audível da identidade de um povo. Aquele homem usa os mesmos significados e os mesmos significantes, os mesmos conceitos e as mesmas imagens acústicas. Os signos empregados são os mesmos. Porém, o seu tom de voz e a passagem das palavras pela glote concedem-lhe um som edulcorado, sedoso, de profeta promissor no sermão da Sexagésima. Lima as consoantes nos alvéolos dentários, ou talvez apenas com a ponta da língua túmida gorjeie as vogais num arrastamento saltitante de twist hábil; quando rola a consoante com a vogal, concede-lhe uma harmonia síntona, esfregada e ecoada no palato.
Usa muitos advérbios de modo e remata quase todas as frases, os períodos e os parágrafos com um sibilado “praticamente”. Talvez tenha aprendido que o “praticamente” nega de modo parcial ou total o anteriormente proferido, desculpabilizando-o ou descomprometendo-o da asserção enunciada.
E contudo, o emissor, mais do que estabelecer o traço comum da comunicação, apenas quer intimar/intimidar. Por isso, talvez por isso, se perceba que existe uma estranha relação entre as palavras e o seu conteúdo, uma relação contrária onde o dito se torna nulo face às palavras usadas.
Este falante carece de muitos substantivos para a lata realidade que pretende açambarcar, calçando-a com verbos frouxos e só enérgicos no plano do futuro distante – aí já não incorrerá no risco de ser desmentido, pois ninguém recordará o proferido.
O enunciador tem sempre uma missão. Essa missão é o seu destino e o seu destino é o do seu povo. O povo ouvinte.
O adjectivo, no seu discurso e por seu turno, tem a função específica de muscular o nome. A missão é “grandiosa”. O destino sem ele é “temível”. A sua obra será “triunfal”…
Este discurso elenca em sinfonia todos os atributos da promessa e, simultaneamente, a desresponsabilização da sua in-concretização. Este discurso é o da repressão e da subjugação das palavras. Logo, um discurso de opressão. Mas mais do que isso, é um discurso de mentira, de degradação, de apropriação do real e de simulação do oásis virtual.
Os vendedores de “banha da cobra” são mais ingénuos e menos letais…
“…o dominante é a inconstância, a falta de coerência, a mentira – talvez a confirmar que a memória dos povos é curta (e a dos portugueses deve ser curtíssima) e a amnésia e a ousadia dos políticos são imensas.”
José António Saraiva (Expresso, 1984)