Rui Matoso é membro da European Communication Research and Education Association; professor na Escola Superior de Teatro e Cinema e na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa); investigador no CICANT e doutorando em Ciências da Comunicação.
No jornal “Público” de 22 de Outubro escreveu um muito bem fundamentado artigo de opinião subordinado ao título “A insustentável leveza do municipalismo cultural”.
A importância da sua reflexão, que assenta como uma luva numa grande percentagem dos municípios portugueses, leva-nos a partilhar (com a devia vénia) alguns dos itens sobre os quais se debruça e cujo mote é este:
“É a uma câmara que cabe a função de promover, por exemplo, um Festival Transcultural? Ou, pelo contrário, a sua função deve ser a de gerar políticas, ferramentas e condições de produção para que os actores sociais, designadamente minorias, construam um projecto participado e sustentado?”
E antes de entrar no cerne da sua explanação, a propósito, parafraseia Sophia de Mello Breyner:
“Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural.
A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se.
Pois o dirigismo é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reacionária.”
Transcrevemos algumas das ideias mestras do artigo…
“Vive-se numa época em que o poder se disfarça de incompetência, levando à degradação do Estado de direito democrático.”
(…)
“… a cidade transformou-se em mercadoria útil para o turismo e a gentrificação *, espaço de especulação imobiliária, factor de competição territorial, imagem de marca estereotipada e facilitadora da homogeneização dos estilos de vida.”
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“… que a verdadeira autoridade precisa da cultura como meio de interiorização de mecanismos de subserviência, pois nenhum poder político sobrevive satisfatoriamente através da pura coerção.”
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“… sensação de se viver hoje num dos municípios portugueses – salvo excepções – é a de se estar imerso num imenso aquário cuja água se vem turvando à medida que os autarcas se apoderam impunemente, e à revelia da Constituição da República Portuguesa (CRP), de meios e recursos públicos que deveriam ser colocados estrategicamente ao dispor da produção cultural originada pela sociedade civil.”
(…)
“A insustentável leveza do municipalismo cultural é afinal essa falsa realidade social criada pela vontade de sobrepor um ideal estético kitsch (Milan Kundera) ao pluralismo das formas artísticas e socioculturais, renegando assim o pluralismo e a produção alternativa de um novo regime ético do viver em comum.”
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“…o resultado do “Municipalismo Cultural” é o de um conformismo pluralista, no qual a lógica do poder (monolítica e coerciva) é reproduzida pelos agentes culturais, colaborando estes – por medo ou receio de perder a confiança dos eleitos – na sua difusão acrítica. Este municipalismo monstruoso pode então ser entendido como uma espécie de colonialismo cultural, pois ao mesmo tempo que satura as localidades com padrões culturais arbitrários e ilegítimos, destrói os ecossistemas de cultura na sua biodiversidade social. ”
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“A presença de vereadores da Cultura em comissões de apreciação (júri) em concursos públicos de apoio à criação artística é de lamentar…”
(…)
“Observando, e escutando, o que se passa nos municípios, fica-se com a ideia de que os presidentes de câmara e vereadores são como príncipes da cultura e os cidadãos seus subalternos, restando-lhe participar com deferência naquilo que são as “palavras de ordem” e nos horizontes culturais diminuídos. “
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“uma das constantes em muitos teatros e cineteatros do país, independentemente do tamanho das cidades e da cor política dos seus autarcas, é estes servirem fundamentalmente de equipamentos eleitoralistas”.
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“a pessoalização do poder acentua-se, agindo os eleitos em função de lógicas carismático-demagógicas, clientelares e partidárias, prevalecendo, por isso, uma visão paternalista”
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“O “caciquismo cultural” não é tampouco uma intuição subjectiva, é de facto um grave problema histórico, estrutural e estruturante, na vida dos municípios portugueses, e que supostamente deveria ter desaparecido há muito da nossa esfera pública democrática.“
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“Quatro décadas após a instauração da democracia, estamos ainda no grau zero da cultura política autárquica no que à dimensão cultural diz respeito.”
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“… a instrumentalização da cultura para fins eleitoralistas equivale àquilo que Kundera designava como kitsch político. Esse “poder absorvente” enraizado nas cidades portuguesas contemporâneas aparece como uma espécie de novo totalitarismo kitsch (monocultura disfarçada de pluralismo), esvaziando a dimensão cultural de todos os conteúdos antagónicos e críticos da insustentável leveza do municipalismo cultural. “
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“Não se trata pois de “satisfazer necessidades” de consumidores zombificados, mas de estimular as condições necessárias para que os cidadãos e as cidadãs possam criar e gerir as suas próprias necessidades, ou melhor, os seus desejos, na dimensão sociocultural, mas também económica e ambiental, das suas vidas.”
(…)
“As autarquias locais devem assumir um papel catalisador das forças sociais da comunidade, para que as mesmas tenham uma participação activa. “
Pode ler o artigo completo aqui…
E a partir desta inteligente e pertinente reflexão, lúcido espelho de uma realidade que também aqui em Viseu se sente de uma asfixiante forma para alguns agentes culturais (os mais corajosos e menos dependentes), o leitor crítico célere adequará o texto à realidade circundante e às nefastas consequências dela advenientes em termos de uma legítima, salutar, consequente e genuína política cultural.
Aquilo que parece, no caso concreto do município viseense, é que a cultura, desvirtuada e despojada da sua essência e primordial objecto, se terá tornado num velado instrumento de “caciquismo” para arregimentação/satisfação de alguns e em nome de um possível objectivo meramente eleitoralista.
O poder político nunca lidou bem com as “elites intelectuais”. Não sendo um deles – o que qualquer político almejaria em cumulativa alternativa – tenta ter o seu apoio e fazer deles (daqueles que a isso se sujeitam) apaniguados subservientes a custo da subsidiação acriteriosa de projectos, mais das vezes, não ao serviço da profícua disseminação e irradiação cultural, mas sim do egocentrismo de alguns autarcas e até do “eu” muitas vezes disfuncional de outros, que a tudo deitam mão para o seu protagonismo/projecção pessoal.
Isto quando não é o próprio vereador ou presidente do município a erigir-se a agente cultural, mudando circunstancialmente de pele, para satisfação de objectivos de todo arredios da cultura — sensu et latu stricto — embora de tal disfarçados e muito próximos da oportunidade/oportunismo da sua intensa e tragicamente tenebrosa egocêntrica pessoalização.
Nota: Rui Matoso consubstancia o seu articulado com referências a e de estudiosos, conforme pode constatar no seu artigo, através do link supra.
*Gentrificação é o fenómeno que afecta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afectando a população de baixa renda local. (Fonte W.)
Paulo Neto