Podia escrever uma dezena de parágrafos sobre património e matrimónio, pater e mater, riqueza e lar…
Seriam de uma banalidade e inutilidade total.
Venho de famílias de homens muito ausentes, onde um forte clã matriarcal era, em simultâneo, tantas vezes, homem e mulher.
Geradoras do pão de nosso de cada dia, gestoras de fracos ou anchos haveres, educadoras, sofredoras e ainda carinhosas mulheres do Lar.
Eram Mães. Eram Avós. Eram Tias. Eram Irmãs. Eram Mulheres… Uma fraternidade coesa, solidária e ainda disponível para ser tolerante com as machocracias vigentes e regentes.
Cresci rodeado de mulheres, que aprendi a respeitar e a amar.
Vida fora, tive a fantástica ventura e privilégio de conhecer mulheres extraordinárias.
Hoje ou amanhã, neste dia internacional da Mulher – efeméride tão redutora – nada vou fazer de diferente dos outros dias — excepção deste texto…
A não ser olhá-la com a admiração e o fascínio de sempre.
Na minha já longa vida, a Mulher foi, é e será por demais importante para ter um dia. Isso serve ao consumismo e contém, na minha óptica, um efeito quase tautológico.
E é um pouco como o pecador, que todo o ano no “pecado” refocila e pela Páscoa se confessa.
Sem demagogias da treta, flores efémeras, jantares estapafúrdios e de circunstância, muito corporativistas, por vezes até hipocritamente cínicos, façamos o oposto… e decretemos louvá-la e/ou estimá-la como igual em direitos e deveres, os restantes 364 dias do ano, na pluralidade tão vasta das suas competências.
Pelo respeito que lhe temos, a Ela, que até a vida nos concedeu, nos doou…
Dois textos de dois grandes poetas portugueses…
Presídio
Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?
E o ventre, inconsistente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor… Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo…
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética”
Calçada de Carriche
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
António Gedeão, in ‘Teatro do Mundo’