“Eu acho que o meliante se aristocracizou, bem vistas as coisas. Ampliou os seus horizontes e não se satisfaz com cenas de vulgar torcionismo ou chocantes intimidades. Agora aspira ao grande mundo da corrupção, tem amigos bem colocados e casa as filhas com rapazes formados em direito. Usa uma attaché-case Samsonite onde guarda um romance de gare e pastilhas aromáticas para o hálito. E, sobretudo, a copiosa informação dá-lhe uma espécie de risco fácil, como se a averiguação dos actos privados dos governantes fosse um acesso ao poder; quando o que acontece é que o poder favorece o escândalo, para ter na mão a identidade moral das pessoas que, ao serem instadas a ser juízes, são movidas a abandonar-se à ambição de baixo estofo que começa por desrespeitar o que se inveja.”
Agustina Bessa-Luís
“Dicionário Imperfeito”, Guimarães Editores
Neste excerto da grande Agustina está um quase tratado lúcido acerca de neo-espécimes sociais emergentes.
O meliante é um deles. Em jurisprudência, meliante é um delinquente, em particular dos crimes contra o patrimônio. Na vox populi é um vadio, gatuno, malandro, patife.
Tornado aceitável socialmente, até e pela profusa multidão imperante deles, o meliante despiu roupagens antigas, de tempos passados, e enfarpelou-se rendido aos derniers cris da moda parisiense. Fato armani, relógio patek, óculos dior e sapatos lottusse, sim, o seu personal consultant é pago para o metamorfosear em top citizen no chic do adereço.
O meliante, às escondidas, apoia pelo menos três partidos políticos. Já é sócio do clube local, onde a socialite entediada joga canasta e degusta cognac, que manda apontar na longa costaneira, e é um fervoroso adepto da equipa de futebol com mais pontos no campeonato. Vai à missa todos os domingos e comunga, com a filha mais nova pela mão. Instado, não por inclinação natural, mas por cordato génio, faz-se consultor técnico de obras públicas, tais são as solicitações dos seus parvenus amigos políticos, durante os almoços semanais no mais caro restaurante da urbe, onde tem mesa fixa e é tratado respeitosamente por “senhor engenheiro”.
O meliante, raspado de todo o ancestral surro, unhacas bem tratadas, dado ao respeito, começa a apoiar as caridosas instituições locais, a ir ao teatro ver peças de vanguarda e torna-se até um apreciador de artes plásticas, mormente do underground.
Já não tem mãos a medir, tal é a proliferação dos negócios que semanalmente lhe caem em cima da secretária de luzidio mogno. O Tiger Club e o Gentlemen Drivers digladiam-se para o ter no seu seio. A vida torna-se uma vertigem social. O país é-lhe esconso. Do penthouse na cidade à casa de campo no Brasil, passa à villa na praia. O veleiro acostado na marina, serve já e só para as festas das filhas e dos genros. Os políticos descabelam-se por um convite.
Um dia, os boatos de ilegalidades começam a tomar forma na mesa de café. O sururu é de todos audível, mas todos, sem excepção, fazem de contas que nada se passa.
Na semana passada, as forças de investigação policial vieram buscá-lo. Fizeram rusgas. Encontraram dados altamente comprometedores já firmados em escutas telefónicas. O meliante entrou no cinzento mégane com as mãos atrás das costas, para o banco de trás, cabeça baixa, costeado por dois agentes. No noticiário das 20, o advogado vem, escandalizado, falar em “cabalas”, invocando presunções de inocência e arfando a indignação.
Ps: Qualquer semelhança com pessoas ou factos reais é mera coincidência.