Este inteiro auto de naufragar…

Pardacentos os dias. A fazer manguito às festas. Portadores do pretexto, — Vens? Não. Está tão mau tempo. Deprimidos, agonizantes sob um fado desgarrado. Coisa de ébrios. Talvez desvairados. Engrolamos os dias como a beata os padre-nossos. Mal a aurora rompe ansiamos que a noite caia. E é o quase-fim, o dos dias que não […]

  • 0:01 | Sábado, 28 de Dezembro de 2013
  • Ler em 2 minutos

Pardacentos os dias. A fazer manguito às festas. Portadores do pretexto, — Vens? Não. Está tão mau tempo. Deprimidos, agonizantes sob um fado desgarrado. Coisa de ébrios. Talvez desvairados. Engrolamos os dias como a beata os padre-nossos. Mal a aurora rompe ansiamos que a noite caia. E é o quase-fim, o dos dias que não queremos viver. Ou ainda não reaprendemos a viver. Assim, neste modo de sobressalto quieto, olhamos pelos vidros embaciados e fixamo-nos numa chuva triste, fria, rufada. Tudo se assemelha a uma mórbida relutância do ser. Do querer. Do estar. Ninguém se fala porque as palavras já da usura gastas, puem o dito. Ninguém se olha, para lá de um soslaio instantâneo. As ruas já sem passos nem ecos de passos são jardins de pombos esfaimados. As montras, de tão parco iluminadas, mostram à sorrelfa o saldo intocável. Atrás dos balcões melancolizam-se as caixeiras com os dedos entrelaçados nos regaços inquietos. – Amanhã terei emprego?, parecem inquirir os olhos distraídos e parados. Nos cafés, os reformados do costume vêm ler o jornal diário e aquecer o estômago com uma bica escaldada, tarifa de uma tarde mais cálida e com sussurro da tv. Os taxistas da praça se não dormitam atrás dos volantes quedos, desentropeçam as pernas trôpegas num vai-e-vem passarinheiro. Finda-se o Ano numa agonia lenta. Se éramos um povo triste, de tristões parecemos tornados. Até já parece mal sorrir. Pois o riso emigrou. Emigrou na juventude partida. Volto a casa. Está fria, a casa. Na lareira foge a chama, os galhos não crepitam, a cinza cresce. Além, do hotel descem foliões, tal a animação… Tanto riso, que exuberância! São políticos locais. Nédios, luzidios, parecem cónegos, pela Quaresma, rendosamente ocupados no seu tédio ocioso. Deu para tarde, o almocinho. Também era tão amistoso o empreiteiro… Empanturrados de estima voejam nas abas negras dos sobretudos azuis. – Ainda vens? crocita um… -– Passo a despachar o expediente, orneia outro. – Vou apagar as luzes, arrua a remate o mais relapso. E lá vai alegre e cacarejante aos pulinhos levianos, a pandilha. Passa a turba e o silêncio, deles arredio, volta ao largo e à ramaria nua das acácias. Chegou o dia ao fim esperado, como um rastilho entrançado. Um caldo magro e uma cálida telenovela. Uma botija morna nas mantas e um sono tartamudo. Nos ouvidos o versejo cínico do poeta:

“Vejo quanto não vejo ou ver não quero / por temor de que o visto se suceda / obrigado a existir no tempo zero / de onde por futurado não se arreda…”


Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Editorial