Apagar o passado

A História do Cinquecento (século XVI) não deixa de existir porque se derruba o Padrão dos Descobrimentos. A História do Estado Novo (1933/1974) não deixa de existir porque se eliminam símbolos arquitectónicos, escultóricos, pictóricos, fotográficos do regime.

  • 12:06 | Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 2021
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O déspota russo José Estaline vivia rodeado de aduladores da sua pessoa, de servidores da causa, de figuras do momento, com as quais se fazia fotografar amiúde, ora em pose de Estado, ora em fraterno convívio. Figuras que de um momento para outro caíam em desgraça, ou por vislumbre de protagonismo eventualmente ofuscador do líder, ou por mera suspeição de actos, por ónus de uma palavra… tornavam-se de camaradas íntimos em émulos do tirano e do regime que o sustentava. Então, o ódio de Estaline era de tal forma potenciado que obrigava os “serviços” a apagar de todos os documentos, de todas as fotografias, o nome e a figura dos “eliminados”, que e de facto passavam a esse estatuto após uma estadia em Lubianka a “convite” da NKVD.

Apagava-se assim um passado mais ou menos recente e indesejado.

Hoje, em Portugal, começaram a aparecer figuras públicas da política a apregoar a raiva contra o passado de Portugal, contra símbolos e figuras da sua História, tanto contemporânea como mais remota, sendo o contrário também verdadeiro, em actos de glorificação de duvidosa essência.


Se a vida de um ser humano é composta de sincronias positivas e negativas, elas juntas, estruturam o percurso vivencial de cada um. A positividade e a negatividade respondendo a circunstâncias geradas por vários factores, endógenos e exógenos a cada um. “Eu sou eu e as minhas circunstâncias”, referia Ortega Y Gasset. E de facto, a pessoa na sua individualidade e no seu colectivo tem a ver com essas circunstâncias envolventes, de um grupo, de um colectivo, de uma tribo, de um povo, de uma Nação, do mundo e das suas coordenadas epocais.

A História do Cinquecento (século XVI) não deixa de existir porque se derruba o Padrão dos Descobrimentos. A História do Estado Novo (1933/1974) não deixa de existir porque se eliminam símbolos arquitectónicos, escultóricos, pictóricos, fotográficos do regime.

Julgarmos o passado à mera luz do presente é um erro de palmatória. O passado deve ser julgado à luz da época e das suas vicissitudes. Cada um pode ter o seu olhar sobre uma época, sobre protagonistas dessa época, emitir o seu juízo valorativo, filtrá-los pelo crivo da sua idiossincrasia, mas uma coisa é certa… o passado não se apaga. Bom ou mau. Trágico ou glorioso. Opressivo ou libertário. Exclusivo ou inclusivo… ele existe. Pode ser amado ou odiado, mas não pode ser alvo e objecto de apagamentos “Stálin style”.

Podemos não nos reconciliar com o passado. De acordo. Reconhecer-lhe os erros à distância é fácil, porém assisado é também, estudá-lo, compreendê-lo, não forçosamente para o aceitarmos, mas e até, pelo que nele pode haver de negativo, à sua luz e ao seu exemplo, construirmos um presente mais sólido para termos um futuro mais positivo e sem os “erros” de outrora.

 

(Foto de Eduardo Gageiro)

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